Descrição de chapéu Eleições 2022

Para Bia Kicis, eleição de 2022 só será confiável com voto impresso em 100% das urnas; Índia adotou modelo

TSE e especialistas indicam não ser factível implementação total no próximo pleito; Índia levou seis anos nessa transição

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São Paulo

Não basta aprovar o voto impresso antes da eleição de 2022. A não ser que 100% das urnas estejam equipadas com impressoras já no próximo pleito, continuará a haver desconfiança sobre os resultados.

Esse é o recado da deputada Bia Kicis (PSL-DF), autora da PEC (proposta de emenda à Constituição) do voto impresso, que está em análise em comissão especial na Câmara.

A deputada rejeita uma implementação gradual das impressoras, a exemplo do teste realizado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2002, com 6% das urnas.

Na prática, não se trata do voto impresso diretamente, mas sobre a impressão em papel de um comprovante do voto dado na urna eletrônica, que seria mantida normalmente nas eleições.

“Eu, como autora da PEC, faço questão de 100% de impressoras nas urnas; repudio uma implementação gradual, que vai legitimar uma possível fraude”, diz Kicis.

Se houver apenas um projeto-piloto, com transformação de parte das urnas, “nós vamos continuar dizendo que é ilegítimo sim, vamos continuar desconfiando”, diz a deputada.

No entanto, inúmeros especialistas, muitos deles favoráveis ao registro impresso na urna eletrônica, afirmam que é impraticável mudar todo o sistema a tempo da eleição de 2022.

Para Diego Aranha, professor associado de segurança de sistemas na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, é “simplesmente impossível” conseguir implantar o sistema para 100% dos eleitores.

“Daria para fazer um projeto piloto, no máximo”, diz Aranha, que é uma das principais referências no tema e foi investigador nos testes públicos de segurança feitos pelo TSE em 2012 e 2017.

O pesquisador encontrou vulnerabilidades no sistema e é crítico contumaz das urnas eletrônicas sem comprovante físico. Aranha usa a Índia como exemplo. O governo indiano usava uma urna eletrônica semelhante à brasileira e começou a desenvolver um sistema com impressora em 2011.

Em 2012 e 2013, fabricantes fizeram testes com protótipos e, em 2014, o sistema estreou em um projeto piloto nas eleições, em apenas 8 de 543 zonas eleitorais. A partir daí, o sistema foi implementado gradualmente e só atingiu 100% das seções eleitorais em 2019.

“Eu duvido muito que qualquer mudança possa ser feita em 100% da votação até ano que vem. Mesmo se fôssemos para uma proposta mais simples de implementar, como os formulários ópticos dos Estados Unidos, seria necessário treinar eleitores, mesários, e toda a equipe da Justiça Eleitoral”, diz Paulo Matias, professor do Departamento de Computação da Universidade Federal de São Carlos.

Matias defende a implementação do voto impresso para aumentar a segurança da votação, mas não “às pressas”. “É só olhar para a própria transição da cédula de papel convencional para a urna eletrônica, que foi testada em mais de um pleito antes de ser implementada no país inteiro.”

A transição completa de voto em cédula de papel para urna eletrônica no Brasil se deu ao longo de três eleições, de 1996 a 2000.

A PEC do voto impresso precisa ser aprovada em dois turnos na Câmara e no Senado, por três quintos dos deputados e senadores, até início de outubro para valer já na eleição de 2022. Legislação que muda regra eleitoral precisa ser aprovada com, no mínimo, um ano de antecedência ao pleito para vigorar.

Caso aprovada, e partindo do pressuposto de que não será questionada no STF, só então o TSE poderia realizar uma licitação para a compra das impressoras.

O tribunal não se manifesta sobre prazos e afirma apenas que cumprirá a legislação. Ressalta que o mercado precisa ter condições de atender uma demanda dessa magnitude —serão 577.125 urnas em 2022, sendo que 15% são urnas de contingência e reserva.

Depois da licitação, haveria um período de desenvolvimento do software, produção e testes do equipamento, transporte e treinamento. “A implantação do voto impresso envolve um procedimento demorado, embora não seja possível, neste momento, estimar sua duração”, diz o TSE.

Os estudos para implementação do voto impresso nas eleições de 2018, antes de o STF declarar a mudança inconstitucional, previam uma implantação gradual, com aquisição inicial de 30 mil módulos impressores.

Considerando, em média, o tempo de uma licitação dessa complexidade, a estimativa de técnicos é que a fabricação dos módulos impressores começaria no primeiro semestre de 2022. E teria um obstáculo —há uma escassez na oferta mundial de componentes eletrônicos e microchips.

Mesmo assim, a deputada Bia Kicis e outros defensores da proposta acreditam que há tempo suficiente para a mudança ser feita e que o TSE está de má vontade.

“Nós já passamos por isso em 2002. Em dois meses, o tribunal conseguiu fazer a licitação e colocar as impressoras. Não faz diferença se você vai colocar 400 mil urnas ou 40 mil urnas. A licitação é igual. Mostra que há empresas capazes de entregar essas impressoras”, diz Kicis.

“As urnas já existem e são aptas a receber uma impressora acoplada. Nós não queremos agora mudar as urnas, só queremos por uma impressorinha do lado. E dá para fazer isso tranquilamente. Todas os especialistas com quem eu converso dizem que dá tempo.”

Segundo ela, o TSE “inexplicavelmente” resiste ao voto impresso desde 2014. “É claro que dá tempo: na Índia, onde há quatro vezes mais eleitores que no Brasil, em um ano implementaram o voto impresso... Em um ano." A implementação do voto impresso na Índia levou seis anos.

A deputada acha que mudar o sistema gradualmente vai deixá-lo ainda mais vulnerável a fraudes.

“Se 10% das urnas imprimirem o voto, e 90% não, os potenciais invasores vão fraudar as urnas sem impressão, onde não podem ser detectados —é como o ladrão que não rouba a casa onde sabe que há armas”, diz Kicis.

Além disso, diz, usariam a auditoria dos comprovantes impressos para legitimar todo o sistema. “Vai dar para eles o discurso de que todos os que testamos deram certo e isso prova que o sistema é íntegro e inviolável, e sabemos que não é. Vai nos deixar à mercê de fraudes.”

Kicis não acredita que a medida possa ser considerada inconstitucional no Supremo. O Congresso Nacional já chegou a aprovar a criação do voto impresso, em reformas eleitorais em 2009 e 2015. Nas duas vezes, a mudança, feita por projeto de lei, foi barrada pelo STF.

“Desta vez vai ser mais difícil. Lá atrás, a população não estava ainda ligada nesse tema. Hoje, o povo está indo pra rua pedir voto auditável, a população está muito desconfiada”, diz.

“E nós temos um procurador-geral da República [Augusto Aras] que é favorável ao voto impresso, diferentemente da Raquel Dodge [ex-PGR], que entrou com ação direta de inconstitucionalidade do voto impresso no Supremo."

O vice-procurador-geral eleitoral, Renato Brill de Góes, afirmou à Folha que a proposta de voto impresso é “teoria da conspiração aliada a negacionismo da tecnologia”, e que o objetivo da PEC é “manipular e insuflar determinados segmentos da população e criar um estado de confusão mental emocional ou passional sobre a realidade dos fatos”.

A deputada não recua. “Mas o procurador-geral Aras é a favor. Creio que esse procurador que é totalmente contra não conhece o sistema”, afirma Kicis.

Políticos governistas e de oposição vêm discutindo a conveniência de aprovar a PEC do voto impresso para esvaziar o discurso do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que vem afirmando que haverá fraudes em 2022 se o atual sistema for mantido.

“Se tiraram da cadeia o maior canalha do Brasil e se a esse canalha foi dado direito de concorrer, o que me parece é que se não tivermos voto auditável, esse canalha, pela fraude, ganha as eleições do ano que vem”, disse Bolsonaro em 15 de maio, referindo-se ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em janeiro, logo após a invasão do Capitólio nos EUA por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, que questionavam o resultado eleitoral, Bolsonaro disse: “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”.

O presidente da comissão especial da PEC, deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), rejeita a tese de que os bolsonaristas estejam usando o tema do voto impresso para tumultuar e causar instabilidade eleitoral.

“Tumultuar é ir para a eleição sem o voto impresso. Há um questionamento da sociedade, precisamos aprovar essa PEC o quanto antes”, diz.

Pesquisa Datafolha de dezembro de 2020 mostrou que 73% dos brasileiros são a favor da continuidade do uso das urnas eletrônicas e 23% defendem que se volte a adotar o voto em papel. Do total de entrevistados, 69% disseram que confiam muito ou um pouco no sistema de urnas informatizadas.

Kicis também vende a aprovação do voto impresso como a melhor maneira de evitar questionamentos da eleição de 2022.

“O presidente Bolsonaro já disse: se eu perder com voto impresso, eu perdi, eu aceito. Ele está dando a receita. Era para a esquerda toda querer o voto impresso. Quem acha que o Lula vai ganhar tem mais é que querer o voto impresso, porque ele iria legitimar essa vitória”, diz. “Nem o Bolsonaro nem eleitores do Bolsonaro devem contestar.”

Mesmo que o TSE não consiga fazer uma mudança a jato em centenas de milhares de urnas no país? “Se fizerem só uma amostragem de impressão, vamos piorar o sistema. E não vão me calar, vou continuar dizendo até o fim que vou desconfiar, e não sou só eu, há milhares de pessoas que desconfiam.”

Ana Cláudia Santano, coordenadora geral da Transparência Eleitoral Brasil, não acredita que a aprovação da PEC neste momento vá pacificar os ânimos.

“Sou pessimista. Acho que teremos questionamento da legitimidade da eleição tendo ou não o comprovante de papel na eleição, porque isso entrou na mentalidade de certos grupos”, diz Santano, que é professora de direito eleitoral na UniBrasil.

A docente afirma ver espaço para melhora da urna eletrônica e adoção do registro em papel, mas acha que isso não deve ser feito “de afogadilho”.

Manifestantes pró-governo Bolsonaro defendem voto impresso e auditável, em ato na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro - Silvia Machado/TheNews2/Folhapress

ALGUNS DISPOSITIVOS DE SEGURANÇA DA URNA

  • Uso de criptografia
  • Código certifica que o sistema da urna é o gerado pelo TSE e não foi modificado
  • Somente o sistema do TSE pode funcionar na urna
  • O sistema da urna fica disponível para consulta pública por seis meses
  • Em Testes Públicos de Segurança, especialistas tentam hackear o equipamento e apresentam as falhas encontradas para o TSE corrigir
  • Urnas selecionadas por sorteio são retiradas do local de votação e participam de uma simulação da votação, para fins de validação
  • Sistema biométrico ajuda a confirmar identidade do eleitor
  • “Log”, espécie de caixa-preta, registra tudo o que acontece na urna
  • Impressão da zerésima e boletim de urna
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