Descrição de chapéu Folhajus

Investigação de vítima sem controle externo é brecha em proposta de novo Código de Processo Penal

Ministério Público e juízes consideram que texto precisa de ajustes ao falar sobre apurações defensivas

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São Paulo

Suponha que um homem rico e influente, suspeito de aliciamento sexual de mulheres e de estupro, banque uma investigação paralela com o objetivo de devassar a vida de cada uma das vítimas para tentar provar que o que dizem não é digno de crédito.

Inclusive que, por meio dos seus advogados, ele busque cada uma dessas mulheres e as pessoas ligadas a elas para colher testemunhos. Tudo isso sem informar à Justiça e sem qualquer controle externo ou acompanhamento de autoridade pública.

Outra situação hipotética: um político é investigado sob suspeita de matar uma pessoa dentro de um apartamento. Sua defesa solicita e obtém os registros de vídeo do circuito interno antes da polícia, para uma investigação defensiva que pretende atribuir a outra pessoa a culpa pelo crime.

Ambas as circunstâncias podem virar possíveis e com aval da lei na proposta apresentada neste ano para o novo Código de Processo Penal, em artigo que define a oficialização da “investigação defensiva”, na visão de integrantes do Ministério Público e de setores do Judiciário.

Apesar de a investigação defensiva ser considerada majoritariamente um instrumento legítimo, porque permite que a defesa possa produzir provas para contribuir na elucidação de casos, a medida virou alvo de questionamentos diante do relatório preliminar proposto pelo deputado João Campos (Republicanos-GO) em comissão especial na Câmara, que não chegou a ser votado.

A avaliação é que foram dados extensos poderes às bancas de advocacia para essa apuração, que inclusive podem levar a abusos e constrangimentos, além da ausência de controles externos sobre investigações privadas.

A comissão especial que analisava o tema foi extinta pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e substituída por um grupo de trabalho, cujo objetivo é facilitar a aprovação de um texto.

O grupo ainda será instalado, mas terá um prazo de 90 dias e deve ser coordenado por Margarete Coelho (PP-PI), aliada de Lira. Campos deve continuar como relator.

A investigação defensiva, de acordo com o texto prévio de Campos, visaria a produção de provas pela defesa em benefício do seu cliente. Podem ser contratados laudos periciais, pesquisadores, auxiliares de trabalho de campo e até detetives particulares.

Era expressamente dito na proposta, por exemplo, que "o advogado, o defensor público e os outros profissionais que prestarem assistência na investigação não têm o dever de informar à autoridade judicial ou policial os fatos investigados defensivamente".

Apontava, no entanto, para a necessidade de que seja garantida a dignidade das pessoas envolvidas, e possível punição ao “abuso do direito de defesa”.

Também seria permitida a tomada de depoimentos, mas não foram definidas quais as condições para que essas declarações sejam prestadas.

A redação nesse formato havia sido sugerida em emenda do deputado Luiz Flávio Gomes (PSB-SP), morto no ano passado, e reproduzia os termos de uma norma do conselho federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) assinada em 2018.

“A lei está passando um cheque em branco para as defesas fazerem o que elas bem entenderem sem qualquer tipo de procedimento”, diz o promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo Fábio Bechara, doutor em direito processual penal.

“Quem vai definir e ter a competência para regular o procedimento da investigação defensiva?”, questiona.

O principal argumento dos advogados para a investigação defensiva é que não há “paridade de armas” com a polícia e o Ministério Público —ou seja, a defesa é limitada perto dos órgãos de investigação e acusação.

Bechara diz acreditar que a investigação defensiva provocará, nesses termos, o oposto desse argumento e dará poderes muito superiores aos advogados em relação aos órgãos de investigação e acusação. Ele prevê que o assunto acabaria questionado ao STF (Supremo Tribunal Federal) e eventualmente declarado inconstitucional.

O presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), Ubiratan Cazetta, diz que o texto deixou "aberto para o advogado fazer o que quiser, sem controle estatal nenhum”.

"Um Código de Processo Penal moderno reserva um espaço para a proteção da vítima, tanto para a indenização, para um resultado da ação, como para que ela possa ser um agente desse processo. Nada disso é tocado no [relatório preliminar do] novo Código de Processo Penal", afirma.

Se o procedimento não for retirado do texto final do novo código, a ANPR quer que sejam incluídos nele o controle judicial das investigações defensivas e limites definidos para as oitivas de testemunhas e produção de provas, como tratamento humanizado na abordagem de vítimas de violência sexual.

O juiz Walter Nunes da Silva Junior, que participou das discussões do novo código como representante da Ajufe (Associação dos Juízes Federais), afirma que o texto do substitutivo foi baseado na norma da OAB e deve ser ajustado.

“A investigação defensiva é uma realidade e acho que ela deve ser prevista, o que não deve ficar é em um ato normativo da OAB, naturalmente. Ela [a investigação] tem que ser uma lei, em sentido formal e material, mas acho que requer mais discussão", afirma o magistrado.

Para ele, essas investigações criminais têm que ser comunicadas ao juiz do caso e todo o processo de apuração tem que ser documentado de forma adequada. Ele avalia que deve haver obrigação, inclusive, de os depoimentos serem prestados de forma audiovisual.

Advogados ouvidos pela reportagem discordam das críticas do Ministério Público.

“O limite da investigação [defensiva] fica restrito ao limite legal que você tem para não ferir direitos”, diz a advogada Cecilia Mello, que foi juíza do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região). “Eu não posso constranger uma testemunha. Se eu fizer isso, eu estou praticando uma ilegalidade.”

Ela entende que problemas com casos em que a defesa tem muito mais poder financeiro e político que a vítima já acontecem, mesmo com o atual código. A advogada diz acreditar que isso é um problema relacionado à justiça social e à desigualdade do país, e que não se agravaria com as modificações legislativas propostas.

“A investigação defensiva não atribui ao advogado ou àquele que ele contrata os poderes do Ministério Público ou da polícia. Evidentemente você não pode quebrar um sigilo, você não pode ter acesso a documentos sigilosos ou a informações financeiras, bancárias, tributárias ou invadir a privacidade de alguém.”

Há, no entanto, a possibilidade de fazer requisições para ter acesso a outras provas a magistrados –ela cita o exemplo, mesmo sem o novo código, da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que solicitou acesso aos dados dos sistemas da Odebrecht para uma investigação defensiva.

O advogado Daniel Gerber, especialista em direito penal econômico, diz que “ninguém será obrigado a se submeter à investigação defensiva”. “O que o código está abrindo é a possibilidade de assim o fazermos", afirma.

“Apesar de sermos comparados ao juiz e ao promotor, todos nós como indispensáveis à administração da Justiça, a nossa investigação sem dúvida alguma tem muito menos poder que a do Ministério Público”, acrescenta.

Além da investigação defensiva, a proposta preliminar do novo Código de Processo Penal também criava a figura do juiz das garantias, fazia mudanças no Tribunal do Júri e colocava o papel investigativo do Ministério Público como subsidiário.

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