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Vera Iaconelli

Também tenho vontade de falar tudo que me vem à cabeça

Impunidade e paranoia se cruzam e iluminam cena grotesca na qual Bolsonaro tira a máscara para xingar repórteres, emissoras de TV e até seus assessores

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Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP

E se pudéssemos falar toda e qualquer coisa na frente dos outros sem nenhum tipo de censura ou prejuízo? Ou melhor, se a ameaça de punição pela falta de decoro ou injúria nunca se cumprisse, trazendo a confirmação, ato após ato, de que somos tratados como reis absolutos? E que, mesmo estando nus frente ao povo, só um louco —ou uma criança sem rabo preso— se atreveria a nos corrigir?

Vontade de dizer tudo o que vem à cabeça todos temos, mas um longo processo chamado educação nos promoveu duas coisas: o desprazer de ter que inibir nosso impulso de fazê-lo e, ao mesmo tempo, o direito de exigir que os outros se contenham também. Não falo tudo o que quero, tampouco sou obrigada a ouvir tudo o que pensam sobre mim.

O presidente Jair Bolsonaro tira máscara durante entrevista a uma repórter de afiliada da TV Globo em Guaratinguetá (SP) nesta segunda-feira (21)
O presidente Jair Bolsonaro tira máscara durante entrevista a uma repórter de afiliada da TV Globo em Guaratinguetá (SP) nesta segunda-feira (21) - Reprodução

A brincadeira civilizatória é, então, “segura o seu ódio, que eu seguro o meu e permanecemos ambos no jogo”. Nada de bom mocismo ou alma pura, apenas uma forma infinitamente mais promissora de viver em sociedade, sem ter que entrar em paranoia.

Claro, porque quem vive de promover violência e dizer impropérios “perde no atacado o que ganha no varejo”, como diz o querido psicanalista Flávio Ferraz. Ou seja, está sempre sob ameaça de receber do outro o próprio veneno.

Tudo isso para pensar no atual presidente e sua incontinência verbal, que se mostrou especialmente forte em plena segunda-feira (21). Afinal, imagina-se que depois de um bom descanso semanal, sendo autodeclarado imune ao novo coronavírus por seu histórico de atleta, não sendo coveiro dos corpos mortos e tampouco tendo algo a ver com o ocorrido, era de se esperar que amanhecesse para suas funções presidenciais cheio de vigor.

O que será que pode ter acontecido? Comoveu-se com as 500 mil mortes que não lhe dizem respeito? Faltou leite condensado no café da manhã presidencial? Colocaram uma ervilha sobre seu colchão?

Ou será que sua história, muito bem descrita no podcast “Retrato narrado” de Carol Pires, o fez apostar excessivamente na impunidade e arriscar cada vez mais? Lá podemos acompanhar as inúmeras vezes nas quais se safou de deslizes —usando de eufemismo— cometidos dentro do Exército, lugar onde se supunha que a hierarquia e a ordem reinavam.

Outro ingrediente nessa empáfia toda foram os quase 30 anos como deputado federal, legislando em causa própria e homenageando torturadores, premiados com o mais alto cargo público do país.

Então temos dois mecanismos que se cruzam, que iluminam a cena grotesca, na qual Bolsonaro tira a máscara para xingar repórteres, emissoras de TV e até seus assessores nesta segunda-feira.

Um, é a tendência humana de arriscar cada vez mais, aumentando a aposta na impunidade, sempre que se confirma na realidade a fantasia de serem onipotentes. Vemos esse efeito em crianças e adolescentes que não são responsabilizados por seus atos. Conhecemos bem esse mecanismo sendo fomentado na parte da população que nunca paga por seus erros por ser considerada sempre cidadã de bem, leia-se brancos.

E aproveito o assunto para discordar do admirado Janio de Freitas, quando ele passa pano para os jovens flagrados num ato racista. São esses gestos minimizados que revelam e perpetuam o racismo estrutural, cada vez mais ousado, porque impune. A punição violenta e arbitrária, por sua vez, a que estão submetidos negros e pobres, também leva à perda de fé no pacto social. A questão é que devemos responsabilizar os sujeitos de forma justa, sem omissões.

O outro elemento para o descontrole presidencial é, novamente, a paranoia, o medo de receber de volta todo o ódio, violência e destruição que acumulou em sua trajetória. Mecanismo tão bem exemplificado entre as figuras autoritárias da história mundial.

Acontece que neste final de semana todas as capitais brasileiras deram notícias de que os dias de impunidade presidencial correm um sério risco de acabar. E de que meio milhão de mortes, dentre as quais centenas de milhares que poderiam ter sido evitadas, devem voltar para assombrá-lo.

Se depender da maioria do povo brasileiro, Bolsonaro ainda vai gritar muito.

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