Conheça as suspeitas do caso Covaxin que deixaram Bolsonaro na berlinda

Como tudo começou, evidências de irregularidades e para onde caminha investigação sobre mercado paralelo de vacinas

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Brasília

As suspeitas de corrupção no contrato bilionário entre Ministério da Saúde e Precisa Medicamentos, representante da indiana Bharat Biotech, inauguraram uma nova fase da CPI da Covid e devem ocupar boa parte dos trabalhos da comissão a partir de agosto, na volta do recesso parlamentar.

A revelação de irregularidades num contrato de R$ 1,61 bilhão, destinado à compra da Covaxin, imunizante mais caro dentre os adquiridos pelo Ministério da Saúde, colocou o governo de Jair Bolsonaro na berlinda. Trouxe à tona ainda a existência de um verdadeiro balcão paralelo de vacinas no militarizado ministério.

A Folha detalha aqui o que se sabe até agora: como tudo começou; as principais suspeitas; quem são os personagens dessa história; as múltiplas frentes de investigação abertas; e quais são as perguntas cujas respostas podem deixar Bolsonaro ainda mais acuado.

  • O que é o contrato

O Ministério da Saúde e a Precisa Medicamentos, intermediadora e representante da fabricante indiana Bharat Biotech, assinaram em 25 de fevereiro um contrato para compra de 20 milhões de doses da vacina Covaxin.

Cada dose saiu por US$ 15 (R$ 80,70), a mais cara dentre todos os imunizantes comprados pela pasta. O valor total do contrato é de US$ 300 milhões (R$ 1,61 bilhão).

Uma nota de empenho reservou o valor total, R$ 1,61 bilhão, em 22 de fevereiro, três dias antes da assinatura do contrato. A nota segue valendo, e o dinheiro não pode ser gasto de outra forma senão com a Precisa Medicamentos e a Bharat Biotech.

No dia 29 de junho, após a revelação das suspeitas, o contrato foi suspenso pelo governo. Apesar de haver recomendação técnica para, inclusive, rescisão do acerto, isso não foi feito pela gestão Bolsonaro.

  • Indícios iniciais num inquérito

Um inquérito civil público foi instaurado pelo MPF (Ministério Público Federal) em Brasília em 19 de fevereiro para investigar as ações do Ministério da Saúde na distribuição de cloroquina, uma droga propagandeada pela gestão Bolsonaro mas sem eficácia para Covid-19.

Uma reportagem da Folha sobre a mobilização de cinco ministérios, estatal, conselhos, Exército e Aeronáutica para distribuir o medicamento foi usada no embasamento da abertura desse inquérito do MPF e na definição das primeiras diligências.

Com o tempo, o escopo das investigações se ampliou. A procuradora da República Luciana Loureiro detectou irregularidades no contrato para a compra da Covaxin, como pressão interna por aprovação e desrespeito de prazos contratuais.

Luciana Loureiro ouviu, no curso desse inquérito, o chefe de importação do ministério, Luis Ricardo Miranda, que relatou pressão atípica para liberar um primeiro lote de doses. O depoimento, prestado em 31 de março, foi mantido em segredo.

Uma reportagem da Folha publicada em 28 de abril revelou as primeiras suspeitas do MPF sobre a Covaxin, mas sem o depoimento de Miranda.

  • Reportagem revela depoimento

Em 18 de junho, nova reportagem da Folha revelou a existência e o teor do conteúdo do depoimento do servidor do ministério. A reportagem fez a CPI da Covid no Senado entrar em uma nova fase, com investigações sobre suspeitas de corrução nas negociações de vacina pelo governo de Jair Bolsonaro.

A partir da revelação do depoimento, a CPI passou a fazer diversas oitivas, e vários personagens relacionados a negociações paralelas por imunizantes inexistentes surgiram no curso das investigações.

Um deles é o PM de Minas Gerais Luiz Dominghetti, que denunciou à Folha ter ouvido um pedido de propina de US$ 1 por dose, formulado segundo ele pelo diretor Roberto Ferreira Dias, em negócio de doses inexistentes da AstraZeneca.

Nas últimas semanas, seguiram surgindo evidências de novos intermediários, com propostas, empresas e atravessadores que estiveram no ministério para vender vacinas que não existem.

O que é suspeito no contrato da Covaxin, pelo que se sabe até agora

1) Descumprimento do prazo contratual: Os 20 milhões de doses deveriam estar no Brasil entre 17 de março e 6 de maio. Nenhuma dose chegou ao país.

2) Preço elevado: O valor cobrado por dose, US$ 15, é o maior dentre os imunizantes comprados pelo governo Bolsonaro. Em novembro, na primeira reunião no ministério, o preço mencionado foi US$ 10.

3) Pressão a técnicos para liberação do imunizante: Militares e dirigentes ligados ao centrão pressionaram, de forma atípica, pela liberação da vacina, mesmo inexistindo documentos básicos tanto sobre a eficácia do imunizante quanto sobre os procedimentos de importação.

4) Temeridade e omissão: O MPF identificou risco temerário e ausência de correção de irregularidades no contrato, indícios de crime que passaram a ser investigados a partir de desmembramento do inquérito civil público.

5) Histórico de calote pela empresa responsável: A Global Gestão em Saúde, sócia da Precisa Medicamentos e dos mesmos donos, foi acionada na Justiça Federal em Brasília em 2018 por ter dado um calote de R$ 20 milhões no Ministério da Saúde, na gestão de Ricardo Barros (PP-PR), hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara.

A empresa recebeu o dinheiro antecipadamente e não entregou medicamentos para doenças raras. Catorze pacientes morreram, em razão da postura da empresa, segundo o MPF. Barros é um dos réus na ação de improbidade administrativa.

6) Duas tentativas de pagamentos antecipados, sem previsão contratual: Por duas vezes, a Precisa Medicamentos tentou garantir pagamentos antecipados de US$ 45 milhões por um primeiro lote de vacinas. Para isso, apresentou “invoices” (faturas internacionais) no início de um processo de importação, o que acabou não ocorrendo por falta de documentos básicos e pela ação de servidores que identificaram o problema.

7) Envolvimento de empresa em Singapura para os recebimentos: A emissora das “invoices” foi uma empresa em Singapura, a Madison Biotech, a quem caberia fazer a exportação das doses. A existência de uma empresa não prevista em contrato foi considerada pelos técnicos do ministério como pouquíssimo usual.

8) Dinheiro reservado há mais de 4 meses: O valor total do contrato, R$ 1,61 bilhão, está reservado desde 22 de fevereiro e não pode ser mexido. A nota de empenho garante que o Orçamento destine a quantia à Precisa Medicamentos e à Bharat Biotech, o que já representa um dano à saúde pública, segundo o MPF.

9) Alerta de inadimplência e validade perto de expirar: O governo manteve o contrato mesmo após um alerta da fiscal do contrato sobre a inadimplência na entrega e sobre o prazo de validade “exíguo” de um primeiro lote.

10) Recomendações da consultoria jurídica atropeladas: O Ministério da Saúde atropelou um conjunto de dez recomendações feitas pela consultoria jurídica que atua no órgão. O contrato foi assinado a toque de caixa no dia seguinte à conclusão do parecer jurídico pelos advogados da União.

11) Empresa dos Emirados Árabes na intermediação: A intermediação da vacina no Brasil contou ainda com uma empresa dos Emirados Árabes Unidos, a Envixia Pharmaceuticals, além da intermediária brasileira, a Precisa Medicamentos.

12) Mudança a jato na forma de pagamentos: Um ofício ao coronel do Exército Élcio Franco, então secretário-executivo do ministério, levou a uma mudança a jato na forma de pagamento pela vacina, com previsão de que houvesse uma transação internacional, via “invoices”, para isso. O ofício foi enviado pela diretora técnica da Precisa, Emanuela Medrades.

13) Garantia irregular: A garantia dada pela Precisa, uma “carta de fiança” fidejussória (pessoal, não emitida por um banco ou uma seguradora), é irregular, por não estar prevista no contrato.

A emissora da carta é a FIB Bank Garantias, que não é um banco e que já teve garantia negada na Justiça por falta de segurança jurídica. O ministério chegou a prever a dispensa de garantia para a compra da Covaxin.

Quem são os personagens dessa história

Jair Bolsonaro
Em 8 de janeiro, o presidente mandou uma carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, afirmando contar com a Covaxin no programa de imunização.

Bolsonaro, em 20 de março, recebeu no Palácio da Alvorada os irmãos Luis Ricardo Miranda, chefe de importação do ministério, e Luis Miranda, deputado federal pelo DEM do DF.

Ouviu dos dois que havia irregularidades no contrato da Covaxin, disse que acionaria a PF e não o fez. O presidente afirma que pediu a Pazuello para tratar do assunto.

Eduardo Pazuello
Ministro da Saúde até 23 de março, o general da ativa delegou a seu braço-direito, coronel Élcio Franco, a negociação de todas as vacinas adquiridas para o combate à Covid-19.

Élcio Franco Filho
Foi secretário-executivo do Ministério da Saúde, conduziu as negociações da Covaxin, mudou a forma de pagamento e chegou a pedir 50 milhões de doses extras, num momento em que não existia nenhuma entrega prevista no contrato.

Roberto Ferreira Dias
Foi diretor do Departamento de Logística em Saúde do ministério. Aprovou e autorizou a reserva de R$ 1,61 bilhão para pagar a compra dos 20 milhões de doses, ainda em fevereiro. É ele que assina o contrato pelo ministério. Pressionou pela liberação da importação das doses.

Onyx Lorenzoni
Ministro da Secretaria-Geral da Presidência, mentiu em comunicado no Palácio do Planalto após a denúncia dos irmãos Miranda. Lorenzoni disse que havia fraude em “invoices” que constavam do próprio sistema do Ministério da Saúde.

Wagner Rosário
Ministro da CGU (Controladoria-Geral da União), também apresentou informações distorcidas e falsas sobre investigações internas do órgão a respeito do contrato, com o propósito de blindar o governo e o presidente.

Luis Miranda
Deputado federal pelo DEM do DF, recebeu do irmão, o chefe de importação do ministério, os relatos sobre irregularidades no contrato. Foi ao Palácio da Alvorada com o irmão e fez a denúncia ao presidente da República.

Luis Ricardo Miranda
Chefe de importação do Ministério da Saúde, afirmou ao MPF e à CPI da Covid ter sofrido pressão atípica para liberar um primeiro lote de doses da Covaxin. Esteve com o irmão no Palácio da Alvorada.

Ricardo Barros
Líder do governo Bolsonaro na Câmara, foi citado pelo próprio presidente como um dos responsáveis pelas suspeitas, conforme o relato do deputado Miranda.

Alex Lial Marinho
Tenente-coronel do Exército, foi coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde no ministério. Foi um dos que pressionaram pela liberação da Covaxin, segundo o chefe de importação.

Marcelo Bento Pires
Coronel do Exército, foi diretor de Programa do Ministério da Saúde. Também teria sido um dos responsáveis pela pressão sobre o chefe de importação da pasta.

Regina Célia Silva Oliveira
Fiscal do contrato da Covaxin. Em depoimento à CPI, admitiu que o contrato ficou sem fiscal por quase um mês e disse que não cabia a ela corrigir falhas nas “invoices”.

Francisco Emerson Maximiano
Dono da Precisa Medicamentos e da Global Gestão em Saúde. Esteve na Índia para tratar da Covaxin e representou interesses de clínicas privadas de vacinação. O negócio bilionário é um feito do empresário.

Emanuela Medrades
Diretora técnica da Precisa Medicamentos. Conduziu boa parte das tratativas com o Ministério da Saúde para garantir o contrato e para tentar garantir as primeiras importações e pagamentos.

Túlio Belchior Mano da Silveira
Advogado da Precisa Medicamentos, também participou de tratativas no ministério. Por email, pressionou a pasta a agilizar a assinatura do contrato.

Quem investiga hoje o contrato

CPI da Covid no Senado: As investigações seguem em curso e devem dominar boa parte dos trabalhos da comissão na segunda metade dos trabalhos.

MPF em Brasília: Um procedimento criminal foi instaurado diante dos indícios de corrupção.

PF: São dois os inquéritos abertos: um para investigar o contrato e outro para apurar a suspeita de prevaricação pelo presidente da República.

PGR: A Procuradoria-Geral da República onduz o inquérito da prevaricação, a partir de decisão do STF pela abertura do procedimento.

TCU: O Tribunal de Contas da União abriu um procedimento para apurar as suspeitas de irregularidades.

CGU: Está em curso um procedimento chamado IPS (investigação preliminar sumária), com duração prevista de até 180 dias. Foi no âmbito desse procedimento que houve a determinação de suspensão do contrato, a partir de decisão da Corregedoria-Geral da União.

Perguntas ainda sem respostas

  • Por que Bolsonaro não acionou a PF, como disse aos irmãos Miranda que faria?
  • Por que Bolsonaro citou seu líder na Câmara? O que o presidente sabe sobre Ricardo Barros?
  • Existe alguma prova de que Bolsonaro pediu uma investigação ao general Pazuello, quando ele ainda era ministro da Saúde?
  • Existe alguma prova de que Pazuello pediu ao coronel Élcio Franco uma investigação sobre o contrato, como o governo sustenta que ocorreu?
  • Pazuello e Élcio fizeram alguma coisa, nos poucos dias que lhes restavam antes da demissão?
  • Houve pagamento de propina no curso das negociações e do contrato para fornecimento da Covaxin?
  • Se sim, quem pagou e quem recebeu?
  • Qual a comissão da Precisa Medicamentos no negócio, para fazer a intermediação da Bharat Biotech junto ao ministério?
  • Qual o papel da Envixia Pharmaceuticals no negócio?
  • O que é a Envixia, ela existe de verdade?
  • Quem são os empresários por trás da Envixia?
  • Por que as “invoices” (faturas internacionais) traziam a previsão de pagamento antecipado?
  • Que provas o governo tem de que esses documentos apareceram depois do encontro dos irmãos Miranda com Bolsonaro, sendo que o próprio governo afirmou que as faturas chegaram antes do dia 20 de março?
  • Como foi possível, dentro do ministério, incluir no sistema de pagamentos do governo federal uma garantia do tipo fidejussória (pessoal) como seguro-garantia?
  • Por que essa garantia irregular foi aceita?
  • Existem conexões concretas entre os donos da Precisa e da Global e o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), como suspeita a CPI? Que conexões são essas?
  • Por que o governo Bolsonaro não cancela de vez o contrato?
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