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Esquentado, Giannotti não era menos complexo do que sua filosofia

Morto aos 91 anos, intelectual era referência crítica do pensamento marxista

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São Paulo

“Tò òn légetai pollachôs” (aquilo que é se diz de várias maneiras), escreveu Aristóteles no livro Z da “Metafísica”. Algo parecido se aplica a José Arthur Giannotti, morto nesta terça-feira (27), aos 91 anos. Há o Giannotti filósofo, o professor, o intelectual público, além, é claro, da pessoa física.

Começo com o professor. Era início dos anos 1980. Tive minha primeira aula de primeiro ano de filosofia com Giannotti, que retornava à USP depois de ter sido afastado compulsoriamente da universidade pela ditadura militar. Ele não estava lá para facilitar as coisas. Giannotti abordou problemas filosóficos difíceis usando termos particularmente complicados. Para piorar, disparava perguntas aos alunos, que, obviamente, não sabiam responder. Ainda fez questão de dizer que quem quisesse levar a filosofia a sério teria de aprender grego e alemão.

Escrevendo assim, parece assustador. E era. Mas acho que havia um propósito por trás dessa terapia de choque. Segundo Platão, a filosofia surge com o “thaumázo”, o surpreender-se, não raro o resultado da percepção de que as coisas não são o que parecem. E Giannotti sabia surpreender, em sala de aula e fora dela. A briga que ele teve com a pipoqueira da faculdade por causa do cheiro do provolone adicionado aos grãos de milho entrou para o folclore da USP. Mas, mesmo ali, Giannotti propunha uma discussão relevante sobre os espaços públicos.

O filósofo José Arthur Giannotti durante inauguração de exposição em 2019
O filósofo José Arthur Giannotti durante inauguração de exposição em 2019 - Zanone Fraissat - 9.fev.2019/Folhapress

O Giannotti filósofo tem como marcas o rigor e a ambição. Enquanto a maioria dos professores do Departamento de Filosofia da USP se conformava ao papel de fazer uma historiografia das ideias, Giannotti achava que o filósofo deve resolver problemas filosóficos. Foi atrás dos mais cabeludos, revirando primeiro o marxismo e depois Wittgenstein.

Seus escritos sobre esses autores, com destaque para “Trabalho e Reflexão”, “Apresentação do Mundo”, “Certa Herança Marxista” e “Lições de Filosofia Primeira”, são textos densos, quase impenetráveis, mas que pretendem ir além de apenas explicar ideias dos outros.

Esses escritos, contudo, como ele próprio dizia, seriam lidos por no máximo cem pessoas. Giannotti se destacou mesmo no papel de intelectual público, que ele desempenhava como ninguém.

O fato de não ter papas na língua fazia com que sempre fosse procurado por jornalistas para comentar eventos do mundo, em especial os da política. Quase sempre saía uma declaração forte. O fato de ele ser muito próximo ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso –ambos participaram dos míticos seminários sobre “O Capital”— e ser visto como uma espécie de conselheiro do rei dava às observações de Giannotti um peso político especial.

É pena. Discussões sutis e relevantes que ele propôs, como a diferença entre a moralidade na esfera pública e na intimidade, acabaram sendo tratadas apenas como manifestações ideológicas e, por isso, escanteadas.

Giannotti também soube desempenhar a função de intelectual público de forma mais serena, com livros como “Universidade em Ritmo de Barbárie”, “Os Limites da Política” e dezenas, talvez centenas, de artigos publicados na imprensa ao longo de várias décadas. A pauta de temas é eclética, transitando da estética à ética, passando, é claro, pela política, daquela com P maiúsculo à mais comezinha.

A pessoa física de Giannotti não poderia ser menos complexa do que sua filosofia. Ele tinha por certo o temperamento esquentado, o que lhe causou alguns problemas mais sérios. Mesmo quando pensava antes de agir, não resistia a fazer provocações.

Na manhã de um sábado já perdido no tempo, telefonou-me Gérard Lebrun. Ele parecia aflito e queria saber como eu interpretava a palavra “beleléu”. “Eu abrri meu dicionárrio aurreliano e ele diz que 'beleléu' significa 'finado'. Não faz sentido”, lamentou-se. Lebrun estava indignado com o título que Giannotti dera à resenha que fizera de “Passeios ao Léu”, o livro que o francês acabara de publicar: “De léu em léu, ao beleléu”. Também não entendi, mas o mal-estar não durou muito. Lebrun não era rancoroso. Com outros autores, porém, Giannotti se envolveu em brigas mais definitivas.

Não tudo, mas muito da rudeza de Giannotti era fachada e se dissolvia nos deliciosos almoços e jantares que ele promovia em sua casa no Morumbi. Se ele colecionou alguns desafetos, também acumulou uma legião de fãs e amigos fiéis.

Vão fazer falta o filósofo, o professor, a figura humana e, especialmente, o intelectual público. Em tempos em que se normaliza a barbárie, precisamos de filósofos que não temam chamar as coisas pelo nome. ​

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