Dominghetti e ONG de reverendo buscavam intermediar venda de vacinas a Angola, Honduras e Paraguai

Documentos com propostas estavam em celular do PM e vendedor de vacinas, apreendido pela CPI da Covid

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José Marques Lucas Ragazzi
São Paulo e Belo Horizonte

O PM e vendedor de vacinas Luiz Paulo Dominghetti Pereira, a associação privada Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários) e pessoas ligadas a ambos discutiram a venda de imunizantes a países como Paraguai, Honduras e Angola.

Em documentos enviados por mensagens e que estavam no celular de Dominghetti, apreendido pela CPI da Covid no Senado, são ofertadas doses da vacina russa Sputnik V ao governo do Paraguai. Quem viabilizaria a importação seria a farmacêutica goiana Cifarma.

Em outros documentos, o líder da Senah, reverendo Amilton, oferece por meio do fabricante americano Latin Air Support doses da vacina da AstraZeneca aos ministérios da saúde de Angola e Honduras.

Dominghetti é um policial militar de Minas Gerais que atuava como representante da empresa Davati Medical Supply.

Ele disse em entrevista à Folha que, em 25 de fevereiro, o então diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, pediu a ele propina de US$ 1 por dose em troca de fechar contrato com o Ministério da Saúde.

Dias, que foi exonerado do cargo horas depois da publicação da entrevista, confirma o encontro, mas nega que tenha havido pedido de propina ao vendedor.

Já a Senah, entidade religiosa comandada por um evangélico, colocava-se como representante do governo federal na intermediação da compra de vacinas, com autorização dada pelo então diretor de Imunização e Doenças Transmissíveis, Laurício Monteiro Cruz, exonerado do cargo justamente porque deria dado aval para que um reverendo negociasse doses da AstraZeneca em nome do governo com a Davati.

A relação do governo de Jair Bolsonaro com empresas ou associações intermediárias para a compra de vacinas, como a Davati e a Senah, são hoje um dos principais foco de investigação da CPI da Covid no Senado.

No celular apreendido pela comissão, há intensa trocas de mensagens sobre a venda ao Paraguai entre Dominghetti e um homem chamado Serafim, representante da Cifarma, e também a um empresário chamado Renato, ligado à Senah.

O empresário afirma nas mensagens que tem acesso fácil ao cônsul geral do Paraguai no Rio de Janeiro, Hernando Arteta Melgarejo, e que ele estava do lado deles nessas tratativas.

Comenta, ainda, sobre a possibilidade de criar uma empresa offshore para evitar a tributação brasileira.

"O cônsul está com nós, né? Nesse caranguejo. Dá pra fazer um contrato nominal comigo? Pode fazer no meu nome direto, porque nesse caso de descomissionamento, como eu tava falando aqui em Brasília, abre uma conta no Uruguai", afirmou.

"Deposita o dinheiro lá e faz a partilha depois, sem pagar os impostos do Brasil, aí traz sem custo nenhum", diz áudio de 17 de junho, e que depois complementa em mensagem de texto: "Offshore".

Em 28 de junho, o empresário afirma ainda que o cônsul menciona a possibilidade de comissão pela venda das vacinas. "O cônsul não é fácil", diz Renato.

São anexados dois arquivos nas mensagens assinados pelo cônsul: um à diretoria da Cifarma e outro ao Ministério da Saúde do Paraguai.

Ao Paraguai Melgarejo diz que em 23 de junho se reuniu em videoconferência com representantes da empresa, que haviam afirmado que tinham autorização de fundo russo para comercializar 30 milhões de imunizantes da Sputnik V.

Na carta, ele diz que os representantes da empresa asseguram a entrega em um prazo de 15 dias, contados a partir da emissão da garantia de pagamento, e pedem a assinatura de uma carta de intenções do Ministério da Saúde paraguaio.

Já na carta à Cifarma, dirigida ao diretor Marinho Pereira Braga, de 29 de junho, ele diz que o ministério paraguaio solicitou uma série de requisitos formais para que a oferta seja considerada no país.

Entre eles, uma autorização do fabricante para comercializar a vacina e especificação formal de qual é a proposta, qual o custo das doses, quais os prazos e condições de entrega e de pagamento.

Procurado pela Folha, Melgarejo confirma ter enviado os documentos, mas afirma que nunca houve qualquer pedido de comissão. "Minha obrigação é transmitir as propostas à embaixada e ao Ministro da Saúde. Aí termina minha função", afirmou. "Eu não tenho nada a ver com as negociações, só retransmito as propostas de vocês [brasileiros]."

Segundo ele, se as empresas não reúnem os requisitos necessários, perdem o seu tempo e o Paraguai não vai considerar suas propostas.

Melgarejo disse que foi procurado pela empresas e afirmou para elas enviarem as propostas que seriam transmitidas ao governo, mas elas não demonstraram que são representantes das produtoras de vacinas.

"Para mim é perda de tempo. Mas minha função é escutar e transmitir, e não julgar", afirmou.

Já a Cifarma informa que tentou viabilizar, sem envolver intermediários, a exportação das 30 milhões de doses da Sputnik V ao Brasil, mas não logrou êxito.

“[Então] O Sr. Dominghetti nos procurou para apresentar a demanda do governo paraguaio e a Cifarma solicitou que fosse formalizada a demanda”, diz a empresa em nota.

Já o cônsul fez uma videoconferência com a empresa “para esclarecer eventuais dúvidas”. “As tratativas foram para a implementação de uma matriz de produção da Sputnik V e consequente venda para o governo paraguaio. A Cifarma analisou a consulta e esclarece que não tem interesse em avançar com a negociação”, diz a empresa.

A farmacêutica diz que não tem qualquer vínculo jurídico ou comercial com Dominghetti, “ficando restrito a uma mera apresentação de pessoas”.

Meses antes, no início do ano, era a Senah quem tomava a frente do oferecimento de vacinas fora do país. Em 25 de fevereiro, carta assinada pelo reverendo Amilton ao governo de Honduras diz que haveria disponibilização de vacinas no valor de US$ 3,97 a dose em até oito dias úteis.

Ele afirmava na carta que as vacinas são da AstraZeneca, que havia disponibilidade de entrega de 35 milhões de doses ao governo hondurenho no período supracitado e que elas estão sob custódia na fábrica da Índia e o fornecimento seria feito pela Latin Air Support, localizada na Flórida (EUA).

No mesmo dia, a Senah elaborou uma carta com os mesmos termos para o governo da Angola. A Latin Air Support é a empresa que eles diziam representar antes de começarem a informar que eram interlocutores da Davati. Não há informações nas conversas se esses países receberam ou responderam às cartas.

Essas cartas foram assinadas no mesmo dia do jantar de Dominghetti com Roberto Ferreira Dias. Dominguetti afirma que buscou o Ministério da Saúde para negociar 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca com uma proposta feita de US$ 3,50 por cada (depois disso passou a US$ 15,50).

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