Na história da redemocratização brasileira, reformas ministeriais são sinais inequívocos ora de acomodações pontuais, ora de prolongamento de agonias. O segundo caso se aplica ao governo Jair Bolsonaro, que namora mais uma mudança no gabinete.
É a fatura, ou "invoice" para ficar no espírito do tempo de CPI da Covid, de seu casamento com o centrão.
O bloco amorfo, nem sempre com a mesma composição, é considerado vital para a governabilidade desde sempre, mas ganhou renovada assertividade sob o presidente.
A alocação de Ciro Nogueira (PP-PI) na Casa Civil sinaliza uma abertura de porteiras da máquina interna do governo ao centrão.
A concessão anterior, dos mecanismos de negociação com o Congresso na forma da Secretaria de Governo na mão de Flávia Arruda (PL-DF), acabou embaçada pela inapetência do general Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), seu antecessor.
O militar da reserva que carrega o título de amigo mais longevo de Bolsonaro no Planalto impediu que a deputada exercesse sua função a contento. Nos bastidores, afinal, os fardados continuam a chamar o centrão pela alcunha eternizada pelo general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).
Uma hora a corda estouraria, pois não há casamento com dote, mas sem consumação, para usar figuras anacrônicas afeitas a Bolsonaro e ao próprio centrão.
O curto-circuito ficara evidente no teatro patrocinado por ambos os lados na discussão do fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões. O acerto é evidente: Bolsonaro toparia algum aumento, talvez aos R$ 4 bilhões vazados pelos envolvidos, e tentaria posar de guardião da moralidade.
Seria a culminação do que se viu entre seus apoiadores no Congresso, gente que posta em rede social o absurdo do valor e depois vota a favor da iniciativa. Esperteza em tempo real tem seu preço.
O problema é que, fiel a seu fígado, Bolsonaro tentou inventar um Cristo no processo, o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM). Salvo a integral participação do deputado na farsa, foi um tiro no pé.
Publicamente, ganhou uma ameaça constante, ainda que pouco crível, de abertura de processo de impeachment se o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), decidir dar uma voltinha.
Isso nos traz de volta ao imbróglio da reforma, que anda de mãos dadas com a pantomima do fundão —afinal, R$ 4 bilhões é dinheiro de sobra para fazer muita gente feliz na campanha do ano que vem.
A indicação e o convite ao senador Nogueira passaram por uma articulação de Fábio Faria (Comunicações), o solerte deputado-ministro que opera em nome do centrão no Planalto e está de mudança para o partido de Lira, o PP.
Ele nunca se deu com o general Ramos, e a oportunidade foi colocada para alinhar, agora para ficar num termo medonho oriundo da Faria Lima que apoiou Bolsonaro, Casa Civil e Secretaria de Governo aos interesses do centrão.
De quebra, se houver a esperada facilidade para que André Mendonça seja aprovado pelo Senado como futuro ministro do Supremo Tribunal Federal, sua cadeira de advogado-geral da União pode ficar com um amigo da turma, o número 2 da Secretaria-Geral, José Vicente Santini.
Ramos, chamado de "pitbull" por seus ex-comandantes no Exército, será novamente alijado. Na Secretaria-Geral, poderá palpitar, mas na prática será apenas um síndico das minúcias palacianas.
Na Casa Civil, tentou sem sucesso manter a mão na articulação e não exerceu nem as funções precípuas da pasta, embora nada indique que Nogueira será um tocador de obras que garantirá a recuperação de imagem do governo visando 2022.
A debacle de Ramos está sendo comemorada por seus adversários bolsonaristas dentro e fora do governo, mas não muito: circularam vídeos tentando demonizar Ciro Nogueira por seu apoio histórico a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e por ter chamado Bolsonaro de fascista.
É um processo conhecido do Planalto sob este presidente. O vazamento de um convite e a exposição do nome às intempéries do deserto virtual da razão do bolsonarismo. O problema é que o senador não é um nome obscuro qualquer, e sim uma das chaves do sistema de poder em Brasília.
Assim, a fritura tende a não dar certo, se Bolsonaro seguir o juízo possível que lhe resta. Segundo aliados, sua preocupação é binária: não sofrer impeachment e ser um candidato viável em 2022. Se a primeira angústia ainda parece ao alcance de solução pelo centrão, a segunda é uma incógnita.
Pior: ela depende da primeira. Por ora, o presidente prolonga a agonia de seu mandato para tentar chegar ao ano que vem contando com alguma melhora geral do cenário sanitário e econômico.
O político, contudo, já era. Nem mesmo os militares que ainda acreditam nele como última trincheira contra Lula parecem dispostos a engolir o centrão mandando tanto e Bolsonaro traindo todas suas bandeiras residuais de campanha.
A eventual recriação do Ministério do Trabalho só para acomodar o lateral Onyx Lorenzoni serve apenas para evitar que o aliado de primeira hora fique na chuva.
Se não tem impacto fiscal significativo, é mais um prego no caixão do discurso de austeridade e reforma do Estado que, de resto, nunca passou disso. A essa altura da crise, é quase uma multa de trânsito, de todo modo.
Em favor de Bolsonaro há o instinto comensal do centrão, que vai sempre até os últimos estertores de seu hospedeiro, Dilma Rousseff (PT) em 2016 que o diga. Se chegar inteiro a 2022, contudo, é de se questionar a viabilidade do presidente e da fidelidade das hordas ora às portas do governo.
Aí a avenida tanto espezinhada por ele, e naturalmente por um Lula cioso do antipetismo na praça, da tal terceira via poderá se alargar com um sinal verde em seu começo. E o petista, como Ciro Nogueira prova, sempre poderá contar com o centrão.
A alternativa, o arranjo dar certo e manter Bolsonaro como o rival de Lula lá para abril do ano que vem. A renovada histeria virtual dos filhos presidenciais, que criticam o PT a cada soluço, demonstra que este é o plano —até por falta de opções.
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