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Thiago Amparo

Gay e presidenciável, Eduardo Leite faz ato político de coragem equilibrista

'Sou um governador gay, e não um gay governador', disse governador do Rio Grande do Sul

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Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos e coordenador do núcleo de justiça racial e direito na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

“Eu sou gay”, disse Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul na última quinta (01). E repete: “eu sou gay”, na segunda vez com um leve sorriso, quiçá de alívio. Há uma beleza no ato que quaisquer diferenças políticas não são capazes de dissipar, ou não deveriam ao menos.

É um erro trivializar o feito de Eduardo Leite: é libertador, pessoalmente, e custoso, politicamente, assumir-se LGBT+ num país governado por um presidente homofóbico.

Presidente, aliás, a quem Leite (o candidato a governador) ajudou a eleger junto com outros 29% de LGBTs que apoiaram Bolsonaro, segundo o Datafolha pré-eleitoral, e de quem Leite (o presidenciável) agora procura se distanciar ao denunciar na justiça sua homofobia, que, convenhamos, sempre foi patente.

E aqui começam as complexidades; saber transitá-las faz parte da maturidade intelectual da qual não podemos nos furtar. Vamos ponto por ponto.

Primeiro, intersecção entre classe, raça e orientação sexual: Eduardo Leite assume ser um político LGBT+ com a naturalidade conquistada com muito suor e sangue por quem ainda sofre por não se enquadrar, em maior ou menor grau, ao ideal socialmente imposto (branco, masculino, rico, homem e heterossexual).

Heteronormatividade soa como um palavrão, mas indica apenas quais corpos são mais ou menos aceitos pela sociedade, inclusive entre LGBTs. Indica, inclusive, por que esquecemos quem é Kátia Tapety, primeira política transexual eleita em 1992, ou porque muitas políticas lésbicas hoje estejam no armário ainda. A governadora Fátima Bezerra (PT), do Rio Grande do Norte, declarou nesta sexta-feira (2) que "nunca existiram armários" e que tem “orgulho de sempre ter representado essa luta".

O país que aceita cada vez mais a homossexualidade (crescimento de 61% a 67% entre 2013 e 2019) é o mesmo país que mais mata travestis e transexuais (alta de 41% em 2020, segundo a ANTRA, sendo a grande maioria negras) e vê índices de violência sexual e física contra mulheres lésbicas invisibilizados.

Não é de hoje que há disputas internas entre LGBTs, seja pessoalmente (LGBTs são indivíduos e pensam diferente), seja como movimentos. A história dos movimentos LGBTs aqui e nos EUA pode ser contada por meio de consecutivas cisões internas e busca por reconhecimento dentro da sopa de letrinha.

Basta lembrar o esporro que uma das líderes da revolta de Stonewall de 1969, Sylvia Rivera, transgênero e porto-riquenha, deu aos homens brancos na parada de Nova York de 1973: “Há um lugar para mim na mesa? (...) vocês já foram estuprados e presos? É melhor que vocês fiquem quietos”. Ela foi vaiada.

Paradas hoje só existem por conta de pessoas como Sylvia que se jogaram contra a polícia em Stonewall, tanto quanto Leite só pode hoje se assumir por conta das mulheres lésbicas que quebraram tudo no Ferro’s Bar em São Paulo em 1983 ou das pessoas trans que resistiram às prisões arbitrárias nas rondas policiais nos anos 70, ou dos gays que fundaram a pioneira publicação Lampião em 1978, cujo primeiro editorial afirmava “é preciso dizer não ao gueto e, em consequência, sair dele.”

Segundo, olhemos com atenção o tom do anúncio de Eduardo Leite: “Sou um governador gay, e não um gay governador, tanto quanto [Barack] Obama nos Estados Unidos não foi um negro presidente, foi um presidente negro. E tenho orgulho disso.”

Aqui, Leite pratica o que o professor da NYU (Universidade de Nova York) Kenji Yoshino chama de “covering”: minimiza a importância de uma identidade socialmente discriminada para ser mais aceito na sociedade.

Yoshino localiza “covering” como a terceira fase na luta por direitos, após LGBTs terem sido submetidos a torturas físicas e psicológicas chamadas de cura gay (“conversing”) e depois permanecerem no armário (“passing”).

Logo após a fala do governador, bolhas no Twitter começaram rapidamente a ridicularizar a expressão “sou um governador gay, e não um gay governador”, sem entender a complexidade da mensagem política aqui: Leite apela para uma passibilidade política, ao sair do armário ao mesmo tempo em que minimiza o determinismo de sua identidade.

Isto é em uma pílula a chave para uma identidade LGBT à direita: sou, mas não importa politicamente; que é o oposto de uma identidade LGBT à esquerda: sou e, por isso, importo politicamente.

Quem não entendeu isso pouco entendeu o que a referência a Obama deixou evidente: Obama é um presidente negro que fez pouco uso retórico de sua negritude, o que o faz ser qualificado à esquerda de pós-racial, da mesma forma que o ex-presidenciável Pete Buttigieg dissolvia sua orientação sexual, sem escondê-la, em outras credenciais, como veterano de guerra.

Ingressar nesta retórica da passibilidade permite a Leite afirmar ser contra o autoritarismo moral, ao mesmo tempo em que flerta com o neoliberalismo guedesiano que precariza direitos, sem grandes dissonâncias cognitivas.

Assumir publicamente sua orientação sexual é, ao mesmo tempo, um ato pessoal e político, e Leite navegou de forma calculada entre as duas esferas. De fato, a naturalidade da fala de Leite é um atestado do atual estágio das coisas em partidos de centro e de direita no país.

Pesquisas como a do cientista político Gustavo Gomes da Costa desmistificam algumas distorções consolidadas no imaginário político brasileiro.

Se é verdade que foi em partidos de esquerda, em especial PT e depois PSOL, que a pauta LGBT mais se consolidou, isto não apaga a resistência inicial de militantes de esquerda a abraçar LGBTs (seja na década de 1970, vendo-os como sintoma de uma decadência burguesa; seja hoje criticando o que alguns chamam de identitarismo).

Se é verdade que partidos de centro e de direita no país ou ignoraram a pauta LGBT ou abertamente se opõem historicamente a ela, isto não apaga o fato de que, tardiamente em relação à esquerda, estes partidos têm cada vez mais incluído grupos LGBTs em seus quadros (PSDB possui o DiversidadeTucana) e têm proposto candidatos LGBTs (40% das candidaturas trans em 2020 foram de partidos de direita).

Lembro aqui de James Baldwin, autor gay e negro que odiava ser assim enquadrado (ou para ele reduzido). Escreveu em 1955: “Quando negligenciamos, negamos, escamoteamos sua complexidade —que nada mais é do que a inquietante complexidade que caracteriza todos nós—, somos diminuídos e perecemos; é somente dentro dessa teia de ambiguidades e paradoxos, dessa fome, desse perigo e dessa escuridão, que podemos encontrar ao mesmo tempo nós mesmos e o poder que nos libertará de nós mesmos”.

Eduardo Leite nos lembra que sair do armário é um ato, concomitantemente, pessoal e político: pessoal posto que corajoso e libertador, político porque nos joga no mundo completos; o que fazemos com isso —normalizar este mundo ou transformá-lo– é o que importa.

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