Variação da apuração não comprova fraude e resulta apenas da ordem em que urnas são apuradas

Para criar narrativa de fraude, Bolsonaro busca padrões sem nenhuma consistência, afirmam especialistas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Após três anos falando em fraudes nas eleições e mais de um ano depois de dizer que poderia comprovar suas acusações, o presidente Jair Bolsonaro voltou atrás e admitiu que não tinha nenhuma prova, só indícios.

Aliado à apresentação de dados errados e teorias mirabolantes, Bolsonaro também apresentou uma sequência de informações verdadeiras sobre números das apurações, mas fora de contexto, para produzir conclusões falsas.

A Folha consultou especialistas em áreas como economia, estatística e física, e todos eles foram categóricos em afirmar que as suposições levantadas por Bolsonaro sobre a apuração ter variado não fazem sentido. ​

O presidente Jair Bolsonaro durante live em 29 de julho
O presidente Jair Bolsonaro durante live em 29 de julho - Reprodução

Durante a live, Bolsonaro colocou sob suspeita os resultados da apuração de três pleitos. Um deles, do 2º turno de 2014, em que concorriam Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). Para ele, a queda de Aécio, que nos primeiros minutos da eleição alcançou 67,7% dos votos, só pode ser explicada por fraude. Ele terminou com 48,36% dos votos.

Bolsonaro utilizou também a variação de seus percentuais durante a apuração do 1º turno em 2018 como indicativo de fraude. Bolsonaro chegou a marcar 49% dos votos quando as parciais começaram a ser divulgadas pela televisão, por volta das 19h. Ele terminou com 46,03% dos votos.

Já no 1º turno da disputa para a Prefeitura de São Paulo, em 2020, ele considera indicativo de fraude que os percentuais de cada candidato durante o início da apuração eram praticamente os mesmos que os resultados finais.

Print de transmissão online de Bolsonaro com percentuais da apuração da eleição de 2018
Bolsonaro utilizou a variação de seus percentuais durante a apuração nas eleições de 2018 como indicativo de que teria havido fraude a favor de Haddad - Reprodução/Jair Bolsonaro no Youtube

Claudia Eirado, que é doutoranda em economia e mestre em estatística e probabilidade pela UnB (Universidade de Brasília), dá um exemplo para explicar como retratos da apuração não são representativos do total da amostra.

Ela pede para se considerar um saco com 100 bolas, sendo metade (50%) das bolas verdes e a outra metade vermelha. Caso uma pessoa retire dez bolas do saco e, dessa amostra, seis bolas (60% da amostra) são verdes e quatro (40%) vermelhas, ela faz o paralelo de que não é possível dizer que 60% das bolas do grupo total são verdes.

Não se pode inferir, a partir da primeira amostra, que existem 60 bolas verdes e 40 bolas vermelhas. Esse raciocínio é falso”, explica. “O fato de um candidato sair na frente não significa que o resultado está consolidado. Se fosse assim, nem seria necessário apurar todos os votos.”

“A variação nesses percentuais ao longo da apuração não indica fraudes ou irregularidades e ocorre principalmente pela variação no fluxo de envio de dados —o Brasil é um país continental— e também pela diversidade de perfil de votação relacionado às regiões do país.”

Manoel Galdino, cientista de dados com formação em economia e doutorado em ciência política pela USP, explica que Bolsonaro desconsidera o contexto e os demais dados para fortalecer sua narrativa.

“Se você já tem uma teoria em que acredita e a única coisa que quer é procurar na realidade alguns fatos que pareçam corroborar a teoria, você vai achar”, afirma. “Mas não é assim que se testa uma teoria. Você faz um teste em que aleatoriza, faz uma análise rigorosa dos dados e vai ver que não funciona.”

“Ele pega, por exemplo, o momento em que ele [Bolsonaro] está na frente e que o Sudeste tem pouco mais de 10% dos votos [apurados], mas por que ele não pegou o momento quando tinha 20% das urnas apuradas ou 1% das urnas apuradas, em que o Haddad estaria um pouquinho na frente?”.

Print de transmissão online em que aparece Bolsonaro no canto do vídeo e ao lado percentuais da apuração da eleição
Bolsonaro alegou em live, que percentuais da apuração da disputa pela prefeitura de São Paulo em 2020 eram indício de fraude - Reprodução/Jair Bolsonaro no Youtube

De acordo com o estatístico Gauss Cordeiro, professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), as teorias de Bolsonaro sobre fraude não têm embasamento. “Todos esse pontos são bravatas, não têm nenhuma consistência científica.”

Além disso, ele explica que a variação da apuração oscila não só a depender de quão acirrada é a disputa, mas também a depender das diferenças entre regiões; estados, entre capital e interior, e dentro dos próprios municípios.

”A regularidade estatística numa eleição bem disputada, como no caso da Dilma e do Aécio, essa regularidade estatística vai demorar muito a ser atingida, você vai precisar talvez de pelo menos 20% dos votos computados das diferentes regiões.”

Já Leandro Tessler, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais da Unicamp, destaca que Bolsonaro segue o padrão dos boatos disseminados na internet. “Você mistura informação verdadeira e correta com desinformação. O objetivo é causar confusão no receptor da mensagem, que não consegue entender o que é real e o que é falso."

Mauro Paulino, diretor-geral do Datafolha, afirma que as variações ao longo da apuração são simplesmente resultado da ordem com que as urnas são apuradas.

“Quando se acompanha a apuração, é muito comum adotar um tom de corrida, 'agora fulano ultrapassou ciclano'. Mas, na verdade, o resultado já está dado, não existe corrida, é só uma questão de ordem de entrada dos dados durante a apuração.”

Apesar de as teorias não fazerem sentido, o físico Ney Lemke, que é professor da Unesp, avalia que a estratégia atinge seu objetivo.

“É você tentar gerar um nível suficiente de dúvida nas pessoas para que elas passem a acreditar no que você está dizendo”, diz. “Não é uma questão tanto de validade estatística, a questão é de impacto psicológico e argumentativo que surge. Isso não dá para negar que foi eficiente, Trump usou isso e Bolsonaro está usando novamente.”

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.