Anita Garibaldi é referência para conservadoras e feministas com vida 'fora do padrão' no século 19

Grupo em SC preserva memória de revolucionária enquanto ativistas mais jovens fazem releitura contemporânea

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Laguna (SC)

Num sábado de maio deste ano, um grupo com cerca de cem pessoas percorreu 25 quilômetros a cavalo, em um trajeto inverso ao feito por Anita Garibaldi (1821-1849) quando deixou sua cidade, Laguna (SC).

Entre as mulheres da cavalgada que deu início às comemorações do bicentenário estavam a vice-governadora de Santa Catarina, Daniela Reinehr, e outras vestindo chapéus, lenços vermelhos e roupa verde oliva.

Chamado de Guardiãs de Anita, o grupo baseado na terra natal da revolucionária se dedica a preservar a memória dela, com projetos como o de levar uma boneca de pano nas escolas e prática de montaria. As roupas, dizem elas, têm inspiração militar.

Nos 200 anos do nascimento de Anita, comemorados nesta segunda-feira (30), conterrâneas dizem ver nela uma referência de força, coragem e liberdade. Ao lado do italiano Giuseppe Garibaldi ela lutou na Guerra dos Farrapos (1835-1845) e pela unificação da Itália no século 19.

​As Guardiãs começaram a se organizar há cerca de cinco anos. Hoje, todas as 11 integrantes, entre elas a primeira-dama da cidade, Rithan Ahmad, moram em Laguna. Só é possível ingressar por convite, depois que o nome proposto por alguma delas é aprovado por unanimidade em votação.

“Em primeiro lugar, para ser uma guardiã, é preciso se dedicar inteiramente ao grupo e à história de Anita”, diz a advogada Ivete Scopel, 64. “Ensinando essas meninas de hoje a se libertar, não nessa libertinagem que anda por aí, mas pelos valores, de buscar o estudo, não depender do homem, mas trabalhar ao lado do homem."

“Tudo na vida dela inspira a gente”, diz a gestora Andreia Noal, 47. “Ela é contada na história como coadjuvante na Revolução Farroupilha e foi uma das mentoras. A gente quer resgatar que ela era uma personagem ligada a todos os processos da revolução."

“Ela lutou mesmo, pegou em armas, mas também cuidou da família, do marido, ela realmente lutou pelos ideais que tinha, por liberdade, igualdade. Por que não a mulher ser igual ao homem e ter os mesmos direitos?”, diz Nora Cavalcanti, 65, bancária aposentada.

Caçula do grupo, a estudante Nicolly Rocha, 16, descobriu recentemente um parentesco distante com Anita e diz que a admira por enfrentar o machismo da época. “Deveria ser tudo igual [entre homens e mulheres]. Não faz sentido uma mulher ser rebaixada por fazer uma coisa que é natural."

Quando questionadas sobre se identificarem como feministas, porém, parecem hesitar. “Está muito deturpada hoje em dia a palavra feminismo. O termo está sendo usado de uma forma muito pejorativa. Ser feminista todas nós somos, porque todas nós lutamos por ideais, por espaço”, diz Andreia.

“Mas a gente luta mais pela igualdade entre homem e mulher, não como está hoje. Eu sempre digo que o que eu valorizo mais nisso tudo é o Garibaldi, um homem de caráter. Se ele não tivesse deixado nada escrito dessa mulher, nós não estaríamos aqui, o monumento não estaria ali e ninguém lembraria de uma tal Ana Maria de Jesus Ribeiro”, acrescenta Ivete.

A professora de história da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Cristina Wolff, 53, feminista, também salienta a importância dos registros do italiano para a memória posterior de Anita.

“No século 19, as mulheres estavam com os exércitos, só não eram reconhecidas enquanto guerreiras. A exceção da Anita se deu pelo Garibaldi que, nas suas memórias, falou dela. Houve mulheres que seguiram exércitos, que eventualmente pegavam em armas, mas não aparecem, porque a história delas não foi contada", afirma.​

Duas mulheres de mãos dadas em frente a porta de uma casa
Kátia e a mãe, Elisabete, em frente a uma das vitrines com manequim de Anita em Laguna (SC); a loja funciona junto à casa onde Anita viveu com o primeiro marido - Fernanda Canofre/Folhapress

No ano do bicentenário, a história de Anita parece estar mais em evidência, ao menos em Laguna. Vitrines de lojas colocaram manequins vestidos como ela.

“Ela foi uma guerreira de dois mundos”, diz Kátia Sousa, 40. “Para mim, ela representa uma mulher guerreira, forte. A mulher de hoje tem que ser valente, tem que ser igual Anita”, diz a mãe dela, Elisabete Sousa, 63, que participou como atriz da encenação da Tomada de Laguna, sobre a chegada dos farrapos, espetáculo realizado ao ar livre na cidade.

Lize Souza, 35, atriz que interpreta Anita há 18 anos, incluindo em duas edições da Tomada e numa série da NDTV, afiliada da TV Record, diz que Anita foi pioneira e que é defensora do legado dela. "Anita me ensinou que podemos lutar pelo que acreditamos sem deixarmos de ser mulher, feminina, delicada, esposa e mãe igualmente zelosa."

Outra versão de Anita apareceu em uma camiseta —a Anita rockstar. Lívia Antônio Collantes Litvac, 32, criou com amigos uma estampa atualizando a imagem dela, com microfone no lugar da arma e roupas inspiradas em Janis Joplin (1943-1970), cantora que, assim como ela, morreu aos 27.

Lívia também organizou uma exposição na sua pizzaria, na praça com a estátua de Anita, convidando artistas de Laguna para pensar em representações atuais da revolucionária. “A gente precisa trazer uma leitura dela para o contemporâneo, para que a gente tome ela por outra perspectiva, não como alguém que está ali parada, em uma época."

Camiseta com imagem de Anita Garibaldi em temática rockstar
Morta aos 27 anos, mesma idade de astros Janis Joplin, Anita ganhou uma versão rockstar para o bicentenário em camisetas - Fernanda Canofre/Folhapress

Apesar das homenagens, mesmo na própria terra, Anita ainda era julgada até pouco tempo.

Marcela Martins Tavares, 20, professora de história na rede pública, conta que a avó dizia que Anita era uma prostituta porque traiu o marido. Assim como as Guardiãs, ela lembra que foi o sapateiro Manoel quem a deixou.

“Conceitos patriarcais e machistas da época, que as pessoas já falavam dela, porque era uma menina livre. Ela diz isso nas cartas e põe muito desses pensamentos, que hoje a gente fala que são feministas, mas que não se tinha o conceito ainda, por isso ela é revolucionária”, avalia.

O julgamento ecoou até na Câmara dos Deputados, em 1934, no Rio de Janeiro, segundo a pesquisa de Jeruse Romão, autora de uma biografia sobre outra referência histórica catarinense, “Antonieta de Barros” (editora Cais, 2021).

Na pesquisa sobre Antonieta, que admirava Anita e foi a primeira mulher negra eleita deputada no Brasil, Jeruse encontrou uma notícia em um jornal sobre o deputado federal Arão Rabelo afirmando que "Anita era uma vagabunda".

“Não é a heroína que é criticada, é o que ela representou como mulher, porque ela fugiu do padrão”, aponta ela. “Ainda precisamos lutar muito pelos nossos direitos. Anita encarna essa perspectiva de mulheres que lutam, então ela é muito atual."

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