Entenda o que diz a lei sobre atos políticos, motivos para prisão e abuso de autoridade

Especialistas divergem sobre postura que deve ser adotada pelo Estado diante de manifestações antidemocráticas

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Mogi das Cruzes (SP)

Manifestações com teor antidemocrático, como as marcadas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro para este feriado de 7 de Setembro, levantam questionamentos sobre limites dos direitos à manifestação e liberdade de expressão.

Especialistas divergem sobre a possibilidade de punir aqueles que discursam ou exibem cartazes em defesa da intervenção militar, por exemplo. Parte deles considera que só atos concretos, como o emprego da violência, poderiam configurar uma situação de ameaça passível de punição.

A discussão sobre o papel que cabe aos agentes do Estado também foi suscitada em episódios anteriores envolvendo protestos e críticas contra o governo Bolsonaro, coibidos com o uso da agora revogada Lei de Segurança Nacional ou mesmo pelo uso indevido das forças de segurança.

Um episódio de repercussão nacional aconteceu em Belo Horizonte, em maio, quando um morador foi preso por policiais militares dentro de casa, sem mandado judicial, suspeito de atirar ovos contra manifestantes bolsonaristas. Ele foi algemado e levado em um camburão para prestar depoimento.

Naquele mesmo mês, dois homens perderam a visão de um olho após serem atingidos por balas de borracha disparadas por policiais militares no Recife, durante ação não autorizada contra manifestantes críticos a Bolsonaro.

Entenda os limites de atuação do Estado diante de manifestações políticas.

O que diz a lei sobre manifestações políticas? O direito à livre manifestação do pensamento é assegurado pela Constituição de 1988 em seu artigo 5º, que também estabelece o direito à reunião pacífica, sem armas, em locais abertos, sem necessidade de autorização, desde que não tenha sido convocado outro ato para o mesmo local. A única exigência é informar previamente sobre o evento à autoridade competente.

Foi com base em tal princípio que uma decisão liminar (provisória) autorizou a manifestação de grupos de oposição a Bolsonaro no vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, nesta terça (7). Esse ato havia sido vetado antes pelo Governo de São Paulo.

Em sua decisão, o juiz Randolfo Ferraz de Campos, da 14ª Vara de Fazenda Pública, enfatizou que "ninguém tem poder para vetar reuniões" e que cabe ao Estado garantir a segurança dos manifestantes e cumprir a decisão —não deliberar nada em sentido contrário.

A liberdade de expressão é absoluta? Ela pode ser usada para defender o fim da democracia? Entre os direitos fundamentais garantidos pela Constituição estão a liberdade de expressão e de manifestação, porém nenhum deles é absoluto e há entendimentos distintos do que está ou não protegido.

“A democracia não pode aceitar aquilo que meus colegas chamam de discursos suicidas, ou seja, aqueles discursos que não sejam meras defesas de teses, mas ações que pregam a sua própria extinção. Seria um paradoxo do qual não se teria saída”, diz o professor de história do direito penal Diego Nunes, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Sobre os atos bolsonaristas de 7 de Setembro, o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, que chefia o Ministério Público paulista, afirmou em reportagem da Folha que "a simples manifestação pedindo golpe já é um movimento que contraria princípios da Constituição e do Estado democrático de Direito". ​

"Não obstante a liberdade de manifestação, defender um golpe militar é pedir a quebra do status constitucional. Isso está fora do sistema legal e cabem providências do sistema de Justiça", disse Sarrubbo.

Atos que pedem intervenção militar e invasão do STF e do Congresso podem ser vetados previamente? Especialistas da área jurídica consultados pela Folha disseram que não. Eles afirmaram ainda que é preciso separar um conteúdo antidemocrático levado ao ato de uma ameaça real, ou seja, intenção ou planejamento para execução.

Para haver investigação e punição, dizem, é preciso haver crime —algo que não enxergam em faixas pró-golpe militar, por exemplo.

O professor de direito Leonardo Rosa, da UFLA (Universidade Federal de Lavras), defende que se investigue quem financia as manifestações antidemocráticas, mas afirma que, ao mesmo tempo, não há crime na manifestação de tais discursos.

"Uma faixa que peça intervenção militar não é uma forma de ameaça, é uma manifestação política legítima”, disse.

Quando uma fala pode ser considerada ameaça ou incitação? Anamaria Prates Barroso, advogada criminal e doutoranda em direito constitucional, destaca que a liberdade de expressão tem limites, mas pondera que muitas das falas que têm sido incluídas nos inquéritos do STF não configuram ameaça e incitação ou mesmo crime.

“Para que você pratique o crime tanto de ameaça ou de incitação, isso tem que ser algo sério, consistente. As bravatas, por si só, não podem caracterizar o crime de incitação ou ameaça.”

Leonardo Rosa argumenta que é preciso traçar distinções a depender do emissor da mensagem e defende que é preciso analisar o papel desempenhado por autoridades.

“A gente não tem que tolerar que um membro das Forças Armadas ou das PMs [também] possa falar uma determinada coisa só porque um cidadão comum fala.”

Agentes das forças de segurança pública podem participar de atos políticos? Não. Diego Nunes afirma que forças de segurança e militares da ativa têm o dever de hierarquia, disciplina e de se abster de declarações de cunho político. “A desobediência a isso pode acarretar no crime de motim."

Leonardo Rosa concorda, mas não antevê, contudo, possível confusão nos atos bolsonaristas de 7 de Setembro. "Há um histórico significativo de a polícia agir com violência sem justificativa, mas a polícia é muito mais tolerante com manifestações da direita do que da esquerda", diz.

Associações que reúnem oficiais e praças de diversos estados afirmam que não há risco de ruptura institucional, apesar da provável adesão de PMs de todo o país às manifestações. As entidades defendem a presença dos agentes em protestos, desde que de maneira individual.

Quando uma manifestação pode gerar prisão em flagrante? Chiavelli Falavigno, professora de processo penal da UFSC, afirma que a prisão é uma situação excepcional, que deve preencher os requisitos previstos pelo Código de Processo Penal.

No caso do flagrante, é necessário que a pessoa esteja cometendo ou tenha acabado de praticar um crime.

“Para que a pessoa seja presa em flagrante tem que haver um juízo de muita certeza por parte da pessoa que vai prender de que ela está cometendo aquela infração”, diz Falavigno, que é coordenadora do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) em Santa Catarina.

Raphael Neves, professor de direito constitucional da Unifesp e diretor científico do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), acrescenta que é possível que condutas como dano ao patrimônio público ou privado durante uma manifestação possam resultar em prisão em flagrante.

Para o professor de direito penal da FGV Davi Tangerino, o flagrante só é possível quando a manifestação for ilícita, o que estaria configurado pelo emprego de armas de fogo e incitação ao crime, citando como exemplo atos anteriores que pediram o fechamento de instituições e a volta da ditadura, bandeiras que devem voltar às ruas nos atos marcados para o feriado da Independência.

Falavigno acrescenta, por outro lado, que não são todos os crimes que geram flagrante, uma vez que a lei dos juizados especiais diz que, no caso de delitos que podem resultar em até dois anos de prisão, se a pessoa se comprometer a comparecer em juízo a prisão não é necessária.

No caso dos atos no Dia da Independência, a professora afirma que é possível que os manifestantes sejam autuados por fazer apologia do crime, mas que é necessário analisar cada situação de forma concreta.

Há exemplos de autuações que desrespeitaram a lei? Sim. Entre os casos emblemáticos está a prisão de um morador de Belo Horizonte que teve a casa invadida e foi levado para depor algemado acusado de atirar ovos em bolsonaristas durante um ato realizado em maio.

“Se alguém achasse que tacar ovo é crime, instaura o inquérito, intima e apura. Só em países autoritários a polícia invade a casa do sujeito sem ordem judicial a partir de um fato sem relevância penal como esse”, diz Tangerino.

Outro ponto criticado foi o uso indevido de algemas, que de acordo com a súmula 11 do STF (Supremo Tribunal Federal) só podem ser usadas em casos de resistência e fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia.

“No caso da pessoa que estava na casa dela, que foi invadida, não há nenhum motivo para que a pessoa saia algemada que não seja expor uma situação”, afirma Falavigno.

Naquele mesmo mês, no Recife, dois homens perderam a visão de um olho ao serem atingidos por balas de borracha disparadas por PMs contra manifestantes de um ato anti-Bolsonaro.

O comandante da PM de Pernambuco pediu exoneração após o episódio e um dos policiais envolvidos na ação foi afastado disciplinarmente.

Há ainda exemplos de uso da Lei de Segurança Nacional, herança da ditadura militar, tanto por parte do governo contra críticos de Bolsonaro, quanto por parte do STF, para investigar e prender manifestantes que atentam contra as instituições.

O que diz a legislação sobre o abuso de autoridade? A lei sancionada em 2019 prevê uma série de condutas que podem gerar punição de policiais, membros dos Três Poderes e do Ministério Público, tanto na esfera administrativa (perda ou afastamento do cargo), cível (indenização) e penal (restrição de direitos, prestação de serviços ou detenção).

Os professores de direito ouvidos pela Folha dizem que houve abuso por parte dos policiais em Minas Gerais. A lei prevê que é crime “invadir ou adentrar imóvel sem autorização de seu ocupante sem que haja determinação judicial e fora das condições já previstas em lei”.

Falavigno afirma que mesmo o deputado estadual Bernardo Bartolomeu Moreira (Novo-MG), conhecido como Bartô, que acompanhou a ação em Belo Horizonte, poderia responder com base no artigo 150 do Código Penal, por invasão de domicílio, uma vez que não havia ordem judicial para justificar a entrada no apartamento do morador.

Tangerino diz que também houve abuso por parte do parlamentar. “No caso do deputado, acho que é caso de cassação. Isso é caso de quebra de decoro. O sujeito teve sua casa ilegalmente invadida e foi ilegalmente detido. É abuso de autoridade.”

O que há em comum no caso envolvendo a PM de Minas Gerais e casos em que a Lei de Segurança Nacional foi acionada? Casos de detenção e intimação de pessoas após manifestações políticas pacíficas ilustram a violação de direitos e não condizem com um Estado democrático, dizem os professores.

Para Tangerino, os episódios sinalizam uma escalada autoritária no país, com uso do aparato estatal para perseguição política. Ele compara o caso de prisão sem mandado em Belo Horizonte com a determinação do ex-ministro da Justiça André Mendonça de investigar outdoors críticos a Bolsonaro.

“O que nós temos é a instrumentalização dos órgãos de persecução penal a partir de perseguições ideológicas, e esse é um dos traços de regimes autoritários. As pessoas acham que falar em autoritarismo e ditadura é retórica, mas essa é uma das características”, diz.

Neves afirma que é possível recorrer ao direito civil quando a pessoa se sente ofendida, mas que se observa no país uma “profusão de inquéritos e ações penais que não são condizentes com o Estado democrático de Direito”.

“O que vemos de comum nesses casos é a arbitrariedade com a qual se tenta utilizar o aparato penal do Estado para cercear a liberdade de expressão e manifestação”, afirma.

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