Depoentes fizeram mais de 60 declarações falsas à CPI da Covid; veja checagem

Em 17 depoimentos conferidos pela Lupa, autoridades deram informações erradas, antes usadas na decisão de políticas públicas

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Carol Macário
Agência Lupa

A desinformação permeou as decisões do poder público na gestão da pandemia no Brasil, mas não se limitou aos bastidores do governo federal.

Argumentos falsos ou baseados em dados errados e cientificamente não comprovados também apareceram nas declarações de autoridades, ex-ministros e servidores ligados ao Ministério da Saúde durante a CPI da Covid.

Ao longo de quase seis meses, a Lupa acompanhou alguns dos principais depoimentos do colegiado e checou as alegações de pessoas-chave na condução da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus.

Nos 17 depoimentos acompanhados pela Lupa (a CPI ouviu mais de 50 pessoas) foram identificadas pelo menos 62 informações falsas ditas para justificar ações ou explicar decisões.

A lista inclui desde os políticos do primeiro escalão do governo até empresários e parlamentares que direta ou indiretamente impactaram na forma como o Brasil enfrentou a crise.

Os quatro ministros que passaram pela Saúde —os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello e o atual, Marcelo Queiroga—, por exemplo, fizeram ao menos 13 declarações falsas checadas pela Lupa.

Já os servidores em posições estratégicas na Saúde citaram dados falsos sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina —medicamentos que não têm eficácia comprovada contra a Covid-19— e sobre as recomendações de distanciamento social, prática amplamente documentada como eficaz para reduzir a transmissão do vírus.

Para o sociólogo e cientista político Jacques Migs, professor dos programas de pós-graduação de sociologia e ciência política da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), os depoimentos da CPI contribuíram para que a sociedade pudesse ver como o atual governo funciona por dentro.

"Temos um governo muito atípico porque atua fora dos padrões que a gente conheceu ao longo da Nova República. Até então, a gente tinha impressão de que as mentiras, as fake news, eram uma estratégia para a ação política, ou seja, para mobilizar as massas ou como jogo para conquistar aliados e atacar adversários", afirma.

Segundo ele, as declarações com informações equivocadas de alguns depoentes ofereceram uma lente sobre o dia a dia do governo e sobre como a mentira opera duplamente.

"Algumas decisões foram tomadas a partir de mentiras ou com base em mentiras. E essas decisões tiveram consequências dramáticas para a sociedade porque não foram baseadas em informação de qualidade, mas em mentiras do grupo de técnicos que eles arregimentaram. A mentira fez parte do processo de gestão, tanto para defender ou justificar a impropriedade de decisões".

Embora Mandetta, à frente do Ministério da Saúde somente nas primeiras semanas da pandemia —ele foi demitido em 16 de abril em razão de divergências com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido)— tenha errado sobre datas e se equivocado acerca das primeiras orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre testagem em massa, o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde entre maio de 2020 e março de 2021, foi quem mais fez afirmações falsas em seu depoimento acerca de temas considerados chave no combate à disseminação do vírus: o uso de máscaras e a comprovação científica do distanciamento social.

Nelson Teich foi o ex-ministro com declarações mais precisas acerca da pandemia. Em seu depoimento em 5 de maio, dedicou a maior parte das respostas às dúvidas sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina contra a Covid-19.

Na ocasião, ele confirmou que o posicionamento do presidente Bolsonaro sobre a eficácia e extensão do uso desse medicamento no tratamento da doença era amparado na opinião de outros profissionais e até do Conselho Federal de Medicina, informação que está correta.

As divergências sobre o tema entre Teich e Bolsonaro levaram à saída do cardiologista do cargo.

Pazuello prestou dois depoimentos à CPI. Em ambos, deu respostas evasivas sobre a demora na compra de vacinas e a falta de oxigênio em Manaus (AM).

A participação do militar evidenciou que o chefe do principal órgão responsável pelas políticas públicas para saúde em todo o país não se baseava em informações de qualidade.

Ele alegou, por exemplo, que o isolamento social para barrar a transmissão do novo coronavírus não tinha comprovação científica, o que não é verdade. Diversos estudos, incluindo um publicado na revista The Lancet, mostraram que a proibição de aglomerações reduziu a taxa de contágio em 131 países.

Pazuello também errou em informações acerca da utilização de máscaras e atribuiu à OMS um suposto vaivém sobre as orientações do uso da peça, o que não procede.

A organização mudou sua orientação sobre o uso uma única vez, em 5 de junho de 2020, quando recomendou que elas deveriam ser usadas pelo público em geral em áreas com transmissão comunitária.

Marcelo Queiroga, atual ministro da Saúde, também prestou dois depoimentos. No primeiro, exagerou sobre dados do número de pessoas já vacinadas no Brasil até aquela data e errou sobre o Brasil ser um dos países que mais realizaram testes contra a doença.

No segundo depoimento, também se equivocou ao dar o exemplo dos jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol, falsamente afirmando que foi registrado apenas um caso de Covid-19 durante a competição —na verdade, ao menos 302 jogadores da série A do Campeonato Brasileiro 2020 foram infectados pela doença.

Além disso, o atual ministro foi impreciso ao afirmar que tinha encontros regulares com Bolsonaro para despachar sobre assuntos da pasta —nos primeiros 78 dias no cargo, ele teve apenas quatro reuniões diretas com o chefe do Executivo.

Em comum, os dois últimos ministros se agarraram à narrativa de que o Brasil foi o país que mais fez testes e que mais rapidamente tem vacinado pessoas no mundo.

Contudo esse discurso não se sustentava à época. Embora o número de doses aplicadas até o meio do ano tivesse sido alta, o país é um dos mais populosos do planeta, e o número de pessoas vacinadas em relação à população total era baixo se comparado a outros países do mundo.

Defensores da cloroquina

Além dos ministros, a Lupa acompanhou os depoimentos de dois servidores do Ministério da Saúde que tiveram atuação chave durante a pandemia: a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, conhecida como "capitã cloroquina"; e o coronel Élcio Franco, ex-secretário-executivo da pasta e considerado o "número 2" na gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello.

Embora Mayra Pinheiro tenha obtido um habeas corpus que lhe deu o direito de permanecer em silêncio sobre os fatos ocorridos entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, durante o colapso do sistema de saúde de Manaus, nas questões que se dispôs a responder ela buscou tirar qualquer responsabilidade do Ministério de Saúde pela crise no estado do Norte do país.

No total, a Lupa verificou cinco declarações falsas da servidora. As mais graves foram acerca das supostas orientações da OMS sobre cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19 —na verdade, a organização nunca fez recomendação desses medicamentos.

Ela também sugeriu que a OMS se baseou em pesquisas de baixa qualidade metodológica. Contudo, a checagem mostrou que os estudos que sustentaram a avaliação da entidade para não recomendar essas fórmulas não foram feitos com "qualidade metodológica questionável", como disse Mayra.

Na verdade, foi baseada nas evidências de pelo menos seis ensaios clínicos randomizados de alta segurança, envolvendo mais de 6.000 voluntários.

Além de distorcer uma recomendação da OMS acerca do lockdown, Mayra também errou sobre o TrateCov, aplicativo-piloto que foi colocado no ar para auxiliar médicos de Manaus no diagnóstico de pacientes com Covid-19.

A plataforma foi lançada em 11 de janeiro. Reportagens da época mostraram que o aplicativo indicava a prescrição de remédios sem comprovação de eficácia contra a doença em qualquer caso que houvesse dois ou mais sintomas.

Dias depois do lançamento, a plataforma foi retirada do ar por recomendação do Conselho Federal de Medicina.

O depoimento de Élcio Franco, atualmente assessor especial da Casa Civil, também deixou explícito que havia dentro do Ministério da Saúde uma inclinação para adoção de tratamento precoce contra a Covid.

Ele assegurou que não houve distribuição de cloroquina ou hidroxicloroquina por parte do ministério, o que não é verdade. A checagem da Lupa mostrou que a pasta adquiriu comprimidos de cloroquina usando recursos da MP 940/2020, que abria crédito extraordinário para gastos do ministério com a pandemia.

Os documentos são de 29 de junho e 6 de outubro de 2020, portanto, durante a gestão de Élcio Franco como secretário-executivo do ministério —iniciada em 4 de junho do ano passado e encerrada em março de 2021.

Ele também repetiu o discurso de Bolsonaro de que o STF (Supremo Tribunal Federal) restringiu a atuação do governo federal na gestão da pandemia. Essa informação foi desmentida.

Em 15 de abril de 2020, o plenário do STF reconheceu, por meio de uma liminar, a autonomia de estados e municípios para determinar o isolamento social.

De acordo com a decisão, prefeitos e governadores teriam "competência concorrente" com a do presidente em matéria de saúde pública, ou seja, também poderiam, paralelamente, tomar decisões sobre o tema. Dessa forma, não houve "limitação" da atuação da União, como disse Franco.

Informações falsas na diplomacia

O diplomata Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores do Brasil entre janeiro de 2019 e março de 2021, foi considerado um dos nomes-chave nas negociações com a Covax Facility, aliança mundial de vacinas contra a Covid-19.

Em seu depoimento, foram checadas pelo menos seis declarações falsas. Entre elas, a de que o governo brasileiro teria manifestado intenção de adesão ao consórcio desde junho do ano passado, assim que a iniciativa foi definida.

Essa informação foi desmentida. Na verdade, a Covax Facility começou a ser discutida em abril de 2020 e foi lançada em junho. O governo brasileiro só manifestou interesse no programa em julho, um mês depois da data citada pelo ex-ministro na CPI.

Ernesto Araújo também negou ter atacado a China, o que não é verdade. Já antes da pandemia, o ex-ministro foi criticado por declarações acerca do comércio do Brasil com o país asiático —a China é a maior compradora de soja e minério de ferro do país.

Ele se envolveu em pelo menos outras três polêmicas, até mesmo com o embaixador Yang Wanming, e chegou a escrever um texto em seu blog com críticas ao Partido Comunista Chinês.

Na época, o próprio corpo diplomático do Itamaraty avaliou com perplexidade e preocupação a condução do ex-ministro diante do incidente diplomático.

Para o cientista político Jacques Migs, as declarações ao longo da CPI mostraram o modo como o Executivo opera.

"É assustador porque nos faz pensar em como a mentira opera nos processos decisórios que envolvem outras áreas do governo. Se numa circunstância de calamidade pública por conta de uma pandemia os sujeitos envolvidos tomam decisões nesse tipo de material, imagina o que acontece em outras áreas."

Parlamentares e empresários

Empresários e profissionais da saúde acusados de participarem do chamado "gabinete paralelo", grupo que teria assessorado o presidente Bolsonaro nas decisões relacionadas à gestão da pandemia, também tiveram suas falas checadas pela Lupa: os empresários Luciano Hang e Carlos Wizard e a médica Nise Yamaguchi, defensora do tratamento precoce e conselheira do chefe do Executivo.

Todos erraram sobre distanciamento social, cloroquina e vacinas.

No decorrer da comissão, o caso da compra das vacinas indianas Covaxin ganhou os holofotes e as declarações de parlamentares, como as do deputado federal e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); e do deputado federal Luis Miranda (DEM-DF); evidenciaram imprecisões e indícios de corrupção nas negociações de vacinas.

Outros empresários, como a diretora técnica da Precisa Medicamentos, Emanuela Medrades; e o policial militar de Minas Gerais e representante da empresa Davati Medical Supply, Luiz Paulo Dominghetti; e até um líder religioso —o reverendo Amilton Gomes de Paula—, omitiram ou distorceram fatos acerca da suspeita de corrupção na compra dos imunizantes.

Edição Maurício Moraes

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