Descrição de chapéu
Caio Farah Rodriguez e Evandro Proença Süssekind

Nova Lei da Improbidade cria possível cataclismo no controle à corrupção

Nenhum congressista teme por sua reeleição ao defender desfiguração do texto

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Caio Farah Rodriguez

É advogado, professor do Insper e doutor pela Faculdade de Direito da USP

Evandro Proença Süssekind

É advogado, mestre em ciência política pela Uerj e doutorando na Faculdade de Direito da USP

O sociólogo Hélio Jaguaribe notava que, no Brasil, cada geração insiste em repetir, do marco zero, os esforços da geração anterior. Subestimou-nos.

No Brasil, parece que cada geração insiste em impor desafios cada vez mais difíceis à próxima. É o caso da recente desfiguração da Lei de Improbidade Administrativa, veiculada pela lei 14.230, de 26 de outubro de 2021, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro. Três pontos se sobressaem.

Em primeiro lugar, segundo a nova lei (que da antiga só guarda o número), os entes estatais lesados deixam de ter competência para propor ações de improbidade, as quais passam exclusivamente para as mãos do Ministério Público.

No caso da União, perdeu essa competência a AGU (Advocacia-Geral da União), que cuidava, por exemplo, de diversas ações envolvendo ilícitos na Petrobras.

No mesmo passo, a lei suspendeu todas as ações de improbidade promovidas pelos entes lesados, por um ano, até que o Ministério Público se manifeste sobre se quer ou não prosseguir com a ação.

Ao paralisar as ações e as represar no Ministério Público, a lei simplesmente cria a possibilidade de um cataclismo no controle à corrupção. Basta a inação do órgão, no curto prazo estabelecido, para que se extingam todas as ações de improbidade que vinham sendo conduzidas pelas fazendas públicas.

Tal circunstância sugere que o Ministério Público, como órgão de Estado, deva estar muito atento a esse movimento, inclusive se valendo de suas câmaras de coordenação para aprimorar a inteligência e integração funcional de seus membros, que atuam com independência por todo o país.

A exclusão do papel da advocacia pública na propositura de ações de improbidade não pode ser ingenuamente entendida como o fortalecimento do Ministério Público.

Ao contrário, a perspectiva mais plausível é a de que representa a continuidade de um processo de desmantelamento de controles, do qual o enfraquecimento das forças-tarefa do próprio Ministério Público, nos últimos três anos, é outro exemplo.

Em segundo lugar, a lei não só passa a exigir a comprovação de dolo para configuração de atos de improbidade, como define esse requisito de forma que será mais fácil a um camelo passar através do buraco de uma agulha do que encontrar um agente que tenha agido com dolo.

Além de o agente ter que agir com "voluntariedade" para cometer o ato ilícito, a nova redação da lei exige que se comprove ser essa vontade "livre e consciente de alcançar o resultado ilícito".

Ou seja, a caracterização do ato de improbidade ficará agora condicionada a uma misteriosa incursão na consciência do agente que ultrapasse a simples identificação de sua vontade em cometer o ilícito. Bem-aventurados aqueles que conseguirem dividir esse fio de cabelo.

Por fim, em um sistema de divisão de Poderes, como o nosso, a responsabilidade por essas mudanças legislativas ao longo do tempo é dividida entre os Três Poderes. Dessa premissa resultam, no cenário atual, duas constatações indigestas.

A primeira é que o presidente Bolsonaro poderia vetar, mas não vetou nenhum dispositivo da lei.

Com isso, além de frustrar as expectativas dos íntegros membros da AGU que penam todo dia para defender as ações e omissões de seu governo, o presidente dá mais um de seus já infinitos sinais de que a pauta anticorrupção nunca foi prioridade sua.

Bolsonaro utilizou essa pauta para mobilizar eleitores e aliados políticos de ocasião, embarcando-os em uma nau na qual nunca pretendeu navegar. Hoje, os assiste naufragar, estando, ele próprio, na terra firme propiciada por acordos e negociatas que prometeu combater.

A segunda constatação é que, mais uma vez, o STF (Supremo Tribunal Federal) será chamado a intervir.

Em circunstâncias normais, seria só uma corte constitucional cumprindo o seu papel de guardiã da Constituição.

No entanto, nos últimos anos, seja em decisões colegiadas, seja em decisões monocráticas, pedidos de vista e disputas regimentais travadas entre alguns ministros, o STF tem tomado decisões que impactam diretamente o jogo político, o que tem desgastado o tribunal enquanto instituição.

Um custo possível é a perda de credibilidade, justamente na hora de exercer suas funções precípuas, como agora. Não por acaso, segundo pesquisa do ICJ Brasil 2021 divulgada pelo Datafolha, 49% dos brasileiros já acreditam que os ministros do STF são "iguais a quaisquer outros políticos".

Embora a definição de dolo talvez seja nula por ser simplesmente desprovida de sentido, não se pode afirmar com certeza que os demais novos artigos da lei sejam, tomados individualmente, inconstitucionais.

Mas o certo é que, considerados no todo, solapam qualquer chance de dar conteúdo concreto ao princípio da moralidade administrativa constitucionalmente previsto.

Tornou-se jargão entre os mais esclarecidos dizer que não há saída fora da política.

No entanto, esse orgulhoso pragmatismo também deveria ser capaz de reconhecer que, neste momento, representantes eleitos por lavajatistas e antilavajatistas têm entregado uma política anti-anticorrupção.

Deteriora-se o que sobrou da coisa pública, com consequências diretamente sobre os mais pobres, que já voltam a revirar latas de lixo para poder se alimentar.

Apesar disso, nenhum congressista hoje teme por sua reeleição ao defender a inutilização da Lei de Improbidade Administrativa que resulta dessa reforma. E nosso silêncio, como o da família Finzi-Contini do romance homônimo de Bassani, será o selo de nossa responsabilidade.

O QUE MUDA NA LEI

Descrição dos atos de improbidade

  • Como está hoje O texto da lei é genérico sobre as situações que podem configurar improbidade, deixando margem para que até decisões e erros administrativos sejam enquadrados na legislação
  • O que muda O projeto de lei traz definições mais precisas sobre as hipóteses de improbidade e prevê que não configura improbidade a ação ou omissão decorrente da divergência interpretativa da lei

Forma culposa de improbidade

  • Como está hoje A lei estabelece que atos culposos, em que houve imprudência, negligência ou imperícia podem ser objeto de punição
  • O que muda Proposta deixa na lei apenas a modalidade dolosa (situações nas quais houve intenção de praticar a conduta prejudicial à administração). Medida deve promover redução significativa nas punições, pois é muito mais difícil apresentar à Justiça provas de que o agente público agiu conscientemente para violar a lei

Titular da ação

  • Como está hoje O Ministério Público e outros órgão públicos, como a AGU (Advocacia-Geral da União) e as procuradorias municipais podem apresentar as ações de improbidade à Justiça
  • O que muda O Ministério Público terá exclusividade para a propositura das ações segundo a proposta aprovada no Senado
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.