Propostas da CPI contra desinformação usam texto genérico e abrem margem para erros

Para especialistas, projetos podem dar espaço para interpretações equivocadas na identificação de conteúdos e punição dos responsáveis

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Carol Macário Nathália Afonso
Agência Lupa

Ao criticar o impacto negativo da desinformação durante a pandemia, o relatório final da CPI da Covid no Senado propõe mudanças na legislação para punir criminalmente a produção e disseminação de fake news.

Os dois projetos de lei sugeridos pelo relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), no documento, no entanto, usam termos genéricos sobre esse tema. Na prática, isso pode dar espaço para interpretações equivocadas na identificação de conteúdos e na punição dos responsáveis.

Uma das proposições legislativas indicadas pretende alterar o Código Penal e o Código de Processo Penal. A ideia é tipificar como crime a criação ou divulgação de "notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante". Segundo especialistas, esse trecho tem dois problemas.

O primeiro é a própria definição do que seria uma "notícia que sabe ser falsa". Segundo o presidente do Observatório Permanente da Liberdade de Imprensa da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Pierpaolo Cruz Bottini, a compreensão do que é falso é complexa e por isso existem debates em andamento para se chegar a um projeto coeso de combate à desinformação no país.

"Ainda estamos amadurecendo o conceito sobre o que é verdade ou mentira e se o direito tem legitimidade para fazer essa distinção", diz o advogado. "Realmente é difícil legislar nessa área porque a definição de fake news e como ela é feita é complicada. Na maior parte das vezes, uma notícia não é 100% falsa. E ela ganha ‘credibilidade’ e projeção justamente por isso."

A outra parte questionável do projeto diz respeito a quem classificaria uma informação como falsa. O texto não indica se essa identificação será feita por alguma entidade independente ou por um órgão público.

Nesse último caso, a análise de um post que circula nas redes sociais, por exemplo, poderia ser influenciada pelos partidos que estiverem no governo. Como não há clareza sobre como todo esse processo ocorreria na prática, publicações desfavoráveis poderiam ser taxadas como falsas e sofrer censura.

Nesse primeiro projeto proposto no relatório da CPI está prevista a prisão de seis meses a dois anos, além de multa, para quem criar ou divulgar informação falsa.

Nos casos em que a desinformação afetar a saúde pública, a pena aumentaria para de dois a quatro anos de prisão, mais multa, e seria ampliada se o responsável for um funcionário público ou "pessoa que desenvolva atividade de comunicação de maneira profissional".

Enquanto não existe um tipo penal para quem compartilha informações falsas, a legislação brasileira age apenas quando existe algum dano em consequência desse conteúdo.

"E aí existe uma série de crimes específicos, como crime da honra, relacionados à calúnia e difamação, por exemplo; crime de estelionato, quando tem prejuízo financeiro; ou ainda crimes relacionados à manipulação de mercado, crime no campo eleitoral", explica Bottini.

Perfis

O relatório da CPI destaca ainda a necessidade de se identificar a pessoa responsável pela desinformação compartilhada nas redes sociais, o que é proposto em outro PL, que altera o Marco Civil da Internet e a lei da lavagem de dinheiro.

A justificativa é que "somente a partir da devida identificação do eventual infrator é que se pode responsabilizá-lo por seus atos e exigir a reparação dos danos causados". Contudo, a iniciativa não leva em consideração os diferentes tipos de perfis que compartilham uma informação falsa. Isso pode ser um equívoco, segundo especialistas.

"Você coloca em pé de igualdade a indústria de fabricação de desinformação, seja por fins comerciais, seja por fins políticos, com a pessoa que é enganada por essas peças de desinformação e que compartilha ingenuamente. (...) Corre-se o risco de simplificar demais com essa tipificação um tema que é muito complexo", afirma Adriana Barsotti, jornalista e professora do curso de jornalismo da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Para evitar isso, Pierpaolo Cruz Bottini, da OAB, entende que, seja qual for a lei que eventualmente venha a ser aprovada nessa área, ela vai exigir dolo do sujeito, ou seja, a pessoa que dissemina conteúdo falso tem que ser consciente de que a informação que vai divulgar é mentirosa.

"Se um sujeito não tem a ciência clara de que é falso, ficará fora da criminalização. A ideia, portanto, é que exija sempre o dolo, a comprovação de que a pessoa conhecia o caráter de falsidade", diz.

Problema internacional

Divulgado em setembro de 2020, um balanço publicado pela Unesco indicou que pelo menos 28 países haviam aprovado legislação relacionada à desinformação, seja atualizando alguma lei já existente ou aprovando uma nova.

O relatório afirma que é necessário ter cuidado para não criar leis abusivas, que podem acabar sendo utilizadas por governos para censurar opositores.

Alguns estudos já tentam entender como a aplicação de leis afeta o combate à desinformação.

Em junho deste ano, um levantamento liderado pelo pesquisador Peter Cunliffe-Jones, da Universidade de Westminster, analisou leis e regulamentos sobre fake news estabelecidos em 11 países da África subsaariana entre 2016 e 2020. Os pesquisadores avaliaram as normas adotadas e identificaram que tinham uma abordagem punitiva, com penas de prisão de até dez anos.

Cunliffe-Jones e os outros autores do estudo concluíram que as leis aplicadas naqueles países restringiram a liberdade de expressão.

Os governos foram arbitrários na aplicação da lei, muitas vezes classificando como falsas as informações verdadeiras de opositores.

Ou seja, o objetivo maior não era corrigir uma publicação enganosa ou melhorar o acesso a conteúdos de qualidade sobre um determinado tema. Com isso, a autocensura aumentou e a desinformação não foi inibida.

Edição Maurício Moraes

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