Descrição de chapéu Folhajus STF

Sob desconfiança por lava-jatismo, Mendonça tem vida acadêmica voltada a estudar corrupção

Ex-AGU fez tese de doutorado na Espanha na qual abordou anulação de provas e negociação de acordos

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São Paulo

Sob pressão no Congresso por ser visto como um lava-jatista, André Mendonça, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro a uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal), dedicou sua vida acadêmica ao estudo da corrupção.

Ex-chefe da AGU (Advocacia-Geral da União) e ex-ministro da Justiça, o nome sugerido por Bolsonaro para a corte ficou com a sabatina obrigatória travada no Senado por mais de quatro meses.

Mendonça, 48, é doutor em direito pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Pastor da Igreja Presbiteriana Esperança, ele foi escolhido pelo presidente em cumprimento à promessa de nomear um ministro "terrivelmente evangélico" para o Supremo.

Os títulos acadêmicos de Mendonça e sua trajetória de funcionário de carreira na AGU são trunfos dele para aplacar críticos que o vislumbram no tribunal como um defensor incondicional do bolsonarismo.

Na posse no Ministério da Justiça, em 2020, seu currículo foi elogiado por nomes como os ministros do STF Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso e pelo então presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), João Otávio de Noronha.

Na AGU e em período como assessor especial da CGU (Controladoria-Geral da União), o indicado de Bolsonaro esteve envolvido com a negociação, decorrente da Operação Lava Jato, de acordos de leniência, espécie de delação para empresas nas quais há ressarcimento ao erário em troca da permissão para continuar com contratos públicos.

Também esteve à frente na AGU de um grupo especial voltado para a tarefa de recuperar recursos desviados dos cofres públicos.

Seu doutorado na tradicional universidade espanhola aborda justamente essas experiências. Sob o título "Sistema de Princípios para a Recuperação de Ativos Procedentes de Corrupção", defende, no combate a esse tipo de crime, uma atuação além do direito, mais próxima de outras áreas de conhecimento, para que os resultados sejam mais efetivos.

Homem de óculos e colete fala ao microfone
André Mendonça, na época ministro da Justiça, durante agenda em Querência do Norte, no Paraná, em 2020 - Werveson Ferreira - 14.set.20/Divulgação Ministério da Justiça

Publicamente, o indicado ao STF já foi um dos porta-vozes em julgamento na corte de uma das bandeiras da Operação Lava Jato, a prisão de réus condenados em segunda instância.

Em julgamento no tribunal em 2019, o então advogado-geral da União argumentou que era preciso pensar não só no direito dos acusados, mas também no direito das vítimas de crimes. Em sua obra acadêmica, ele também explora essa tese.

A tendência pró-Lava Jato do indicado à corte foi um pontos por trás da paralisação da avaliação pelo Senado de sua nomeação para o tribunal.

Cabia ao presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Casa, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), marcar a data da sabatina, o que ele se recusou a fazer por meses.

Nesse período, circulou entre os senadores dossiê da defesa do ex-presidente Lula, com trocas de mensagens em que procuradores da Lava Jato relatavam, em 2019, encontro com Mendonça para a discussão de assuntos de interesse da força-tarefa.

A inclinação de Mendonça em relação a esses temas é relevante especialmente diante do racha na corte acerca da Lava Jato.

O envio, por exemplo, de casos da operação para a Justiça Eleitoral, visto como um dos maiores reveses da operação, foi decidido pelo tribunal em 2019 por 6 votos a 5. Um dos favoráveis à medida foi Marco Aurélio Mello, agora aposentado e cuja cadeira está vaga.

Há temor entre os políticos de que o presidente do STF, Luiz Fux, aproveite para levar novamente a julgamento questões como essa com a nova formação da corte.

No comando da AGU e à frente do Ministério da Justiça, Mendonça ficou marcado pela defesa irrestrita de atitudes de Bolsonaro.

Utilizou, por exemplo, a Lei de Segurança Nacional para intimidar críticos do governo e foi ao Supremo pedir a liberação de cultos no auge da pandemia. Também protocolou um habeas corpus a favor de Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação à época investigado em inquérito sobre fake news.

Em entrevista a uma rádio em 2020, disse que "os verdadeiros atos antidemocráticos contra a sociedade brasileira" foram os desvios sistêmicos revelados na Lava Jato. Afirmou que a operação foi um marco histórico e que eventuais equívocos não poderiam comprometer todo o trabalho feito.

Em sua obra acadêmica, não faltam palavras duras também para qualificar o problema da corrupção. Diz, por exemplo, que essa mazela fere os direitos humanos essenciais do cidadão e mata. "Não só gera consequências patrimoniais como degrada os símbolos, o funcionamento e a essência do Estado."

Na pesquisa de doutorado, mudanças na legislação visando reprimir a corrupção são vistas com ceticismo. Para combater crimes de natureza complexa, diz ele, é preciso organização e uma atuação sistemática em diferentes frentes, incomum na esfera estatal pelo mundo.

A pesquisa da tese de doutorado foi transformada em dois livros publicados na Espanha, em coautoria com seu orientador, o professor Nicolás Rodríguez-García.

Um deles aborda uma das principais discussões em casos de corrupção, que é a anulação ou validação de provas obtidas em investigação.

A obra, "O Princípio da Validade da Prova em Casos de Corrupção", revisa as jurisprudências dos Estados Unidos e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos sobre o tema, apontadas pelos autores como excessivamente pragmáticas.

Afirmam que a definição da validade da prova deve ocorrer igualmente com base nos direitos fundamentais do acusado e da vítima do ilícito, assim como nos direitos de liberdade e defesa.

"A partir do princípio da justa aplicação da lei e considerando o garantismo jurídico, não se justifica a invalidação de prova devido a formalismos éticos ou concepções legalistas do direito, normalmente encobridoras de discursos utilitaristas ou egocêntricos."

O outro livro, "Negociação em Casos de Corrupção", em coautoria também com Luz Estella Nagle, professora e ex-juíza na Colômbia, é quase um manual sobre métodos e procedimentos para negociar acordos na Justiça. Um dos pilares da Operação Lava Jato foi a sequência de compromissos de colaboração com os investigados.

Além de revisar bibliografia do tema, a obra conta até com dicas para detectar mentiras e para interpretar linguagem corporal e microexpressões faciais.

Fala na necessidade de gerir informações sobre os acusados e dosar as divergências para evitar uma escalada de atritos. Diz que é preciso construir uma imagem de credibilidade e respeito visando o futuro, "o que poderá garantir novos e melhores acordos".

Em um trecho, o ex-AGU lembra um dos orgulhos de sua carreira, que foi a negociação de ressarcimento aos cofres públicos firmada em 2012 com o grupo OK, do ex-senador Luiz Estêvão, preso posteriormente por corrupção.

Disse que, na primeira reunião com a defesa, só ouviu reclamações sobre a condenação de seu cliente, sem que houvesse abertura para discussão. "Como alternativa, a AGU intensificou a estratégia de avançar em medidas de constrição de bens e valores, a fim de fazê-los perceber que o acordo era a medida racionalmente mais acertada."

Em outro trecho, reforça essa tese. "Deve-se considerar a possibilidade de legitimamente piorar as alternativas da outra parte, a fim de que mude de movimento em direção a um acordo de bases mais justas e equilibradas." Como exemplo, fala na obtenção de decisões judiciais enquanto não se assume "compromissos efetivos".

Aos senadores Mendonça tentou desfazer a imagem de ligação com o lava-jatismo. Como a Folha mostrou, o ex-AGU tem dito que respeitará no STF as garantias dos investigados e que não há mais espaço para punitivismo.

Também vem lembrando que, em sua atuação na negociação de acordos, não houve vazamento de informações. Senadores contrários a ele eram entusiastas da nomeação para o Supremo do procurador-geral, Augusto Aras, que é crítico da Lava Jato.

Formado também em teologia, Mendonça faz menções bíblicas esporádicas em seus estudos, como ao citar Adão e Eva ao começar a abordar o problema da corrupção na humanidade e ao afirmar que Jesus Cristo condenou a lei do "olho por olho, dente por dente".

"A Bíblia está cheia de passagens que tratam da dificuldade do ser humano [em lidar] com o poder e o dinheiro e, por conseguinte, em solucionar o problema da corrupção."

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