Descrição de chapéu indígenas

Crise yanomami impulsiona recorde de mortes motivadas por conflitos no campo

Total de mortes contrasta com o de conflitos no campo, segundo dados prévios da Comissão Pastoral da Terra

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Braço do Norte (SC)

O Brasil já registrou, em 2021, um número recorde de mortes em consequência de conflitos no campo, de acordo com a CPT (Comissão Pastoral da Terra), braço da Igreja Católica que atua junto a minorias em zonais rurais e publica cadernos sobre o tema anualmente desde 1985.

Até aqui, foram registrados 103 óbitos deste gênero neste ano, segundo consta em dados preliminares adiantados à Folha e divulgados pela comissão. O número pode ser ainda maior, uma vez que o levantamento só estará consolidado para publicação no ano que vem.

A morte motivada de conflito se refere à que ocorreu devido a uma realidade de violência contra famílias de uma comunidade ou nas relações de trabalho no campo. Estão associadas, por exemplo, a doenças, inanição, acidentes, omissão de socorro e aborto em áreas sob disputa.

O levantamento passou a tratar também disso em 2001 —desde então, o registro mais alarmante era de 2005, com 64 casos.

A CPT difere essas ocorrências dos assassinatos diretos por conflitos no campo, que, de janeiro a novembro deste ano, totalizaram 26 casos —oito deles de indígenas, o perfil mais comum das vítimas. O número é 30% maior que de todo o ano passado, quando houve 20 óbitos deste tipo.

Garimpo em Terra Yanomami - Christian Braga/Greenpeace

O número de morte contrasta com o de conflitos no campo, que, de janeiro a agosto de 2021, totalizaram 682 ocorrências, uma queda de 54,4% quando comparado ao período semelhante de 2020, com 1.498 casos —o ano anterior completo teve 2.054 registros, recorde na série histórica da CPT.

Em seus dois últimos relatórios, a comissão atribuiu o acirramento dos conflitos no campo à atuação e retórica do governo Jair Bolsonaro (PL). A divulgação dos dados prévios de 2021 não foi acompanhada de análise da entidade, o que só será feito junto à publicação do levantamento consolidado.

Das mortes em consequência de conflitos averiguadas em 2021, 101 delas ocorreram na Terra Indígena Yanomami e parte delas já aparecia citada, segundo reitera a CPT, em posicionamento divulgado por líderes yanomami e ye'kwuana em fórum realizado em setembro no qual denunciaram a crise de saúde local agravada pela expansão do garimpo ilegal.

O documento do evento citava a falta de assistência médica e de insumos no combate às xawara, como são chamadas as epidemias trazidas de fora, aos cerca de 28 mil integrantes da maior terra indígena do país, localizada entre Roraima e Amazonas, na fronteira com a Venezuela, onde os yanomami também estão presentes.

Em sua manifestação, os indígenas destacavam a proliferação de casos de malária, o que atribuem à crescente invasão dos cerca de 20 mil garimpeiros ilegais na terra, segundo estimativa da associação Hutukara, responsáveis também pela contaminação de rios por mercúrio e pela escalada de episódios de violência.

A ampliação do garimpo é associada à alta do preço do ouro e às promessas de regularização do governo Bolsonaro, entusiasta da atividade em terras indígenas, o que hoje é considerado ilegal.

No último domingo (5), a Folha revelou que o ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, autorizou a pesquisa do minério na região amazônica conhecida como Cabeça do Cachorro, onde predominam áreas demarcadas.

Neste ano, Bolsonaro já defendeu a legalização do garimpo em terras indígenas em visita a São Gabriel da Cachoeira (AM) para a inauguração de uma ponte de madeira que liga a sede do município a comunidades da TI Yanomami, em maio, quando a comunidade yanomami Palimiú registrou uma série de ataques armados de garimpeiros.

No documento dos yanomami citado pela CPT, eles ainda afirmam terem enfrentado desassistidos a Covid-19, doença que, no entanto, não foi levada em conta entre as mortes em consequência de conflitos levantadas pela comissão.

O relator da CPI da Covid, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), cogitou indiciar o presidente Bolsonaro por genocídio indígena ao alegar omissões do governo, o que não se efetivou.

No último dia 25, em audiência na Comissão de Direitos Humanos do Senado, o secretário especial de saúde indígena do Ministério da Saúde, Robson Santos, classificou a tese de genocídio como absurda e ponderou que a maior parte da força de trabalho da pasta em campo é indígena.

A CPT afirma não conseguir especificar, de acordo com suas fontes de pesquisa, o perfil e as datas exatas de todas as mortes dos yanomami já levantadas para o seu relatório, mas destaca que dizem respeito a 2021 —no documento dos indígenas, há também óbitos relatados de 2020.

Ainda assim, a comissão pondera ter ciência de que ao menos 45 delas eram de crianças. Entre elas, estão dois meninos yanomami da comunidade Makuxi Yano que, em outubro, morreram afogados quando brincavam no rio Uraricuera.

O MPF (Ministério Público Federal) apura que eles teriam sido levados pela correnteza forçada por uma draga de garimpo, que faz sucção dos minérios no fundo do rio.

As crianças na TI vivem fragilizadas ainda pela ocorrência de desnutrição infantil crônica. Neste ano, a foto de uma menina yanomami com as costelas expostas deitada em uma rede deu visibilidade a esse problema.

Com quadro de verminose e malária, criança yanomami dorme em rede na aldeia Maimasi, perto da Missão Catrimani, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima - Divulgação

Procurado pela Folha para comentar os dados da CPT, além das acusações de estímulo ao garimpo ilegal por parte do presidente e de omissão no atendimento à saúde indígena, o Palácio do Planalto repassou o pedido de posicionamento por email à Funai.

A fundação, por sua vez, enumerou, em nota à reportagem, iniciativas de proteção territorial e apoio sanitário apoiadas e executadas por ela na TI Yanomami, mas não fez considerações específicas sobre os dados divulgados pela CPT.

Segundo a Funai, foram investidos R$ 3 milhões em ações conjuntas de combate a ilícitos, o que inclui o garimpo, no local desde o início da pandemia. Já nos últimos três meses, foram presas 38 pessoas e apreendidas 75 aeronaves, 10 balsas e 30 mil quilos de minério, entre outros itens.

O órgão indigenista acrescentou ter aplicado R$ 90 milhões em ações de prevenção à Covid-19 em todo o país, valor que inclui gastos para a garantia da segurança alimentar dos indígenas no período de pandemia.

Disse ainda ter aberto processo seletivo simplificado para a contratação de pessoal que opere barreiras sanitárias em áreas indígenas.

"Por fim, a Funai informa que não comenta dados extraoficiais e reitera que tem sua atuação pautada na legalidade, segurança jurídica, pacificação de conflitos e promoção da autonomia dos indígenas", afirmou, em nota.

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