Descrição de chapéu Eleições 2022

Pico da renovação política passou, diz ativista que lança livro sobre mobilizações

Cientista político explica fórmulas de engajamento e narra experiências com eleições e debates cívicos

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São Paulo

Leandro Machado não se esquece do dia em que, passeando por Buenos Aires, ficou paralisado diante de uma cena de injustiça: um garoto maltrapilho que entrou em uma sorveteria com dinheiro na mão foi enxotado pelo balconista, que viu esperando do lado de fora o pai do menino, um catador de papel.

O cientista político conta que remoeu por anos a frustração de não ter feito nada para ajudar o garotinho argentino, que saiu cabisbaixo e sem o sorvete de chocolate que queria. Do episódio o brasileiro diz ter tirado uma lição: a de nunca mais se omitir perante uma causa pela qual seja válido lutar.

Mais de uma década depois, Machado lança o livro "Como Defender Sua Causa", em que narra experiências com mobilizações na iniciativa privada e na arena pública —e ainda oferece uma espécie de manual de advocacy (conjunto de ações de comunicação e pressão política em prol de uma bandeira).

"Fui afortunado o bastante ao longo da vida para ter naquele momento ferramentas para agir, mas falhei miseravelmente. Fiquei questionando de que forma eu estava utilizando todos os meus privilégios, se numa hora dessas eu poderia ter feito uma intervenção e não fiz nada."

O cientista político Leandro Machado, autor do livro 'Como Defender Sua Causa' - Zanone Fraissat/Folhapress

Assessor de Marina Silva na campanha à Presidência de 2010 e conselheiro do apresentador Luciano Huck em seus ensaios de ingresso na briga eleitoral, o autor ganhou espaço nos últimos anos como cofundador da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade) e do movimento Agora!.

"O pico [da renovação política] foi entre 2014 e 2018. Aí começou a arrefecer, mas há ainda um rescaldo", diz ele à Folha, acrescentando ser natural que demandas mudem a cada ciclo eleitoral.

Machado também analisa no livro exemplos de iniciativas das quais não participou diretamente, como a campanha pela Lei da Ficha Limpa e as manifestações de junho de 2013. Além disso, fornece um passo a passo para ativistas que sonham em impactar a vida de sua comunidade ou os rumos do país.

A opção de não se aprofundar no livro na questão da renovação política pode ser lida como sintoma de que essa causa fracassou? Decidi abordar na obra mais o caminho profissional que trilhei nos últimos 20 anos, nas áreas de relações institucionais e organizações sociais, e menos a minha atuação cívica dos últimos cinco anos.

Já tem muita gente bacana estudando os movimentos de renovação, enquanto a questão do advocacy, que resumo como ações integradas de comunicação e pressão política em prol de uma causa, ainda é pouco pesquisada. Quis compartilhar esse ferramental.

A renovação é um ciclo que se encerrou? As demandas sociais mudam conforme mudam o contexto, a política, a sociedade. Eventos como a pandemia mudam o curso da história, o zeitgeist [espírito do tempo], e consequentemente o que os grupos sociais demandam. O pico foi entre 2014 e 2018. Aí começou a arrefecer, mas há ainda um rescaldo. Com a crise da Covid-19, entrou o debate sobre gestão e experiência.

O declínio se relaciona com o mandato de Jair Bolsonaro, presidente que se elegeu com discurso de renovação? Primeiro, é bom deixar claro que só quem estava em coma acreditou que Bolsonaro era renovação de alguma coisa. Ele era do sistema, mas muito espertamente e sem nenhum pudor se colocou como renovação, assim como surfou a onda da Operação Lava Jato.

Acredito que, sim, possa ter tido um refluxo na questão por conta do Bolsonaro, em parte. E também por causa da falta de qualidade de alguns parlamentares que entraram. Com desempenho sofrível, foram ser youtubers no Congresso Nacional, com produção irrelevante e repetindo velhas mazelas e mecanismos.

Não adianta ser uma pessoa nova, mas com ideias e métodos arcaicos. Renovação é algo que independe de idade, e a Marina [Silva] é um exemplo disso. Ela foi um grande motor da renovação e uma inspiração para muitos jovens.

A desistência de Huck de se candidatar em 2022 teve a ver com a superação da onda de outsiders, os candidatos de fora do sistema? Nunca conversei com ele diretamente sobre isso, até porque ele nunca postulou que seria candidato. Mas analisávamos cenários e movimentações das forças políticas dominantes, com a mudança dos anseios do eleitorado. É claro que houve um certo declínio desse tema [renovação] como a questão política central, e esse é um fator que impacta a estratégia de qualquer candidato à Presidência.

Bolsonaro, que prometeu "botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil", inibiu a ebulição de causas ou conseguiu um efeito contrário? É cedo para concluir, mas já dá para ver algumas consequências. É fato que este governo faz o que estiver ao alcance para fechar o espaço cívico, tentar calar opositores, desacreditar quem pensa diferente, acabar com conselhos e fóruns participativos. Falando de participação social e ativismo, é o governo mais retrógrado desde a redemocratização.

No entanto, a sociedade tem resistido com força e conseguido minimamente manter algumas questões livres desse fechamento total de espaço. [Setores da] Justiça, movimentos sociais, OAB, órgãos de Estado e várias outras organizações têm se aliado e reagido.

Bolsonaro, então, não conseguiu matar o ativismo? De jeito nenhum. Nem teria poder para isso. Nem o militarismo todo, quando ilegalmente exerceu o poder no Brasil [na ditadura], conseguiu matar. Não vai ser um capitão excluído do serviço ativo do Exército que conseguirá. Espaço para causas sempre vai haver.

O sr. era da ala do Agora! que quis em 2018 declarar apoio a Fernando Haddad (PT) no segundo turno, proposta que acabou sendo rejeitada na época, com o movimento optando pela neutralidade. Sob uma gestão petista, o cenário para o ativismo estaria diferente? Não posso dizer como seria um governo Haddad, mas algumas coisas efetivamente não mudariam. Por exemplo, o estado financeiro do Brasil. Desde a Dilma [Rousseff], já estávamos com escassez de recursos públicos. Nesse sentido, parcerias e destinação de recursos para ONGs diminuiriam de qualquer forma.

Entretanto, é óbvio que faz muita diferença ter um governo, e seja ele de quem for, que diga que as organizações da sociedade civil têm seu papel e um que fala que ONGs são nocivas ao país e passa uma mensagem de que só o ativismo do outro lado é coisa de vagabundo, e o meu, não.

Como, na sua visão, esse caldo de ativismos, ódios e paixões que o país vive vai desembocar em 2022? Eu não cometeria a sandice de fazer previsão de desfecho eleitoral, mas acho que a eleição vai ser pautada pelas causas que nos tocam neste momento de crise, como a questão da saúde gratuita como direito universal. Pautas que emergiram na pandemia, como o combate à fome e a busca de igualdade racial, vão impactar os temas discutidos.

Como contornar a evidência de que o poder econômico é determinante para uma causa ser bem-sucedida? É um fato: quem tem mais poder econômico consegue defender seus interesses com maior facilidade no Brasil. Algo que impacta muito isso no país é a não regulamentação do lobby, da defesa de interesses específicos, que não é algo ilegal.

Ao não regulamentar, os mais fortes e poderosos ficam sempre em vantagem. Mas não só organizações ricas conseguem ter sucesso, e dou o exemplo da Cufa [Central Única das Favelas].

A ferramenta do advocacy deveria então ser democratizada? O desejo de torná-la mais acessível para mais pessoas foi o principal impulsionador do livro. Às vezes, a pessoa pensa que ativista é só a Malala [paquistanesa que milita pela educação], alguém distante que vai assumir uma pauta. Causa é aquilo que te move, te faz levantar do sofá, que te incomoda. E aí há infinitas possibilidades de atuação, quer seja assinando uma petição online, quer seja com uma carreira política.

A campanha da Lei da Ficha Limpa e os atos de junho de 2013, citados no livro, foram bem-sucedidos em algum momento, mas se enfraqueceram ou se desvirtuaram. Defender uma causa pode também ser perigoso? Sem dúvida nenhuma. A Ficha Limpa vem sendo enfraquecida nos últimos anos, mas ainda assim está vigente há uma década. Já o Movimento Passe Livre, com uma organização mais horizontal e sem lideranças claras, conseguiu juntar gente e criar momentum, mas acabou arrefecendo. Enfim, acho que há espaço para todos, e é bom que haja esses movimentos orgânicos.

Há quem veja 2013 como uma fagulha que levou à eleição de Bolsonaro. Foi se transformando. E sempre será assim, porque a sociedade é dinâmica e um ativista não tem controle total. Outros movimentos conseguiram pegar nacos e métodos daquela iniciativa para serem a base de um novo ciclo de manifestações.

A hipervalorização do papel da sociedade civil pode se confundir com defesa do neoliberalismo ou transferência de responsabilidades do Estado para o cidadão? Essa é uma crítica que caberia algumas décadas atrás. Com a revolução digital, a sociedade e o tempo de resposta que esperamos mudaram. Antes, canais de atuação e pressão eram muito limitados, na mão de poucos. Hoje há uma estrutura mais distribuída.

Em uma sociedade como a brasileira, é impossível pensar que esse ente que chamamos de governo pode resolver tudo sozinho. As soluções só virão com todos à mesa. Não defendo Estado mínimo, acho uma bobagem. O Estado tem que ter o tamanho necessário para resolver os problemas. No Brasil, precisamos de um Estado grandinho, mas a sociedade precisa e deve ajudar.

Como vê o senso comum de que o brasileiro é passivo, apático? Não acredito que haja uma cultura do imobilismo em relação às questões políticas. Sempre há uma parcela da população com ímpeto de se envolver mais, sair de casa, se mexer.

O que afeta a mobilização no Brasil é a falta de renda de uma enormidade de cidadãos que precisam cuidar de problemas muito mais básicos e urgentes. Fica difícil imaginar que um cara que está pensando se vai ter ou não o que comer fará uma passeata na [avenida] Paulista. Talvez não tenha nem dinheiro para ir até lá.

Apesar disso, vejo uma sociedade cada vez mais engajada, em níveis diferentes. Desde o ativista de sofá, que fica ali clicando e pelo menos está fazendo alguma coisa, até aquele que tem o ímpeto de criar um movimento, uma ONG.

A febre do ESG (governança corporativa, social e ambiental, na sigla em inglês) no âmbito das empresas favorece o avanço de causas no curto prazo? O que se tem hoje é que 80% de empresas nem sabem ainda o que é ESG nem têm ideia de como começar. Acho que é positivo que nasça esse padrão e tenho uma visão realista. Acredito que, assim como a onda da sustentabilidade não tornou todas as empresas do mundo sustentáveis, a do ESG também vai ser duradoura.

Como se sentirá se seu livro for usado para impulsionar causas das quais discorda, como maior acesso a armas ou proibição do aborto mesmo em casos legais? Já pensei bastante sobre isso [risos]. É uma preocupação, porque estou apresentando uma metodologia que pode ser usada para coisas que absolutamente estão muito distantes daquilo em que acredito.

Por outro lado, há o benefício de ter mais e mais pessoas usando esse material para lutar pelas causas certas. Mas é aquilo: quando você cria uma mobilização, nem sempre sabe exatamente onde ela vai parar. E por isso você vai deixar de fazer?

Como Defender Sua Causa

  • Preço R$ 49,90 (impresso); R$ 34,90 (ebook) (168 págs.)
  • Autor Leandro Machado
  • Editora Nacional

​RAIO-X

Leandro Machado, 43
Cientista político formado pela UnB e mestrando em administração pública na Universidade Harvard, trabalha com temas como advocacy, democracia e renovação política. Trabalhou em empresas como IBM, Shell e Natura e é um dos sócios da Cause, consultoria de defesa de causas. É cofundador da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), do movimento Agora! e da plataforma Tem Meu Voto. Trabalhou na campanha de Marina Silva à Presidência em 2010 pelo PSB. Foi selecionado como Jovem Líder Global em 2015 pelo Fórum Econômico Mundial

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