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Judiciário e partidos barraram ímpeto autoritário de Bolsonaro, diz constitucionalista

Cláudio Pereira de Souza Neto afirma que prevaleceu pragmatismo para manutenção da governabilidade

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Brasília

Professor associado de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense, o advogado Cláudio Pereira de Souza Neto afirma considerar que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso foram os responsáveis por impedir Jair Bolsonaro (PL) de seguir em uma escalada autoritária e ampliar a corrosão das instituições no país.

Souza Neto é autor do livro "Democracia em Crise no Brasil" (Editora Contracorrente e Eduerj), ganhador do 1º lugar na categoria Ciências Sociais Aplicadas do prêmio Abeu (Associação Brasileira das Editoras Universitárias) 2021.

Na obra, ele lista pontos que, em sua avaliação, contribuíram para a corrosão da democracia brasileira, entre eles o "populismo penal" da Lava Jato.

O professor concluiu sua obra no primeiro semestre de 2020. De lá para cá, afirma, Bolsonaro acabou optando por uma atitude "mais pragmática e se afastou da insanidade da ruptura institucional", forçado pela pressão de seus aliados no Congresso e pela falta de apoio para aventuras autoritárias.

Souza Neto já advogou para vários partidos e políticos, sendo o autor, ao lado de Daniel Sarmento, da representação que resultou na proibição do financiamento empresarial a partidos e candidatos, decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em 2015.

Ele também assinou a peça do PC do B pela qual o STF fixou as regras do impeachment de presidentes da República, em 2016, estabelecendo, entre outros pontos, que o Senado tem o poder de decidir pelo afastamento do mandatário.

O advogado Cláudio Pereira de Souza Neto, autor de livro sobre a crise da Democracia no Brasil - Pedro Ladeira/Folhapress

A crise democrática no país avançou ou regrediu, em sua visão, desde a conclusão do livro [primeiro semestre de 2020]? A situação política se agravou. A reação do governo Bolsonaro à pandemia produziu resultados dramáticos. A forma do governo Bolsonaro conduzir a relação com o Parlamento, com o Judiciário, com a imprensa e com a sociedade em geral revela um processo de agravamento da crise política. Mas entendo também que, sobretudo a partir de meados de 2021, as instituições têm conseguido controlar o governo e evitar que ele aprofunde o processo de erosão democrática.

Aquela ameaça autoritária, de autogolpe, ficou para trás, em sua visão? Hoje já há consciência de que Bolsonaro não terá condições de levar adiante um autogolpe. Houve as manifestações de 7 de Setembro, em que ele não obteve apoio militar e político suficiente para realizar uma ruptura institucional. Ao mesmo tempo, seus aliados têm cobrado uma atitude mais pragmática por parte do governo. Penso que Bolsonaro, para manter a governabilidade, acabou optando por adotar essa atitude mais pragmática e se afastou da insanidade da ruptura institucional.

O sr. aponta no livro que um dos indicativos de que países chegaram a um ponto de não retorno à normalidade democrática é a reeleição de líderes autoritários. Se Bolsonaro se reeleger, quais seriam os efeitos para a democracia do país? Essa é uma avaliação unânime dos analistas em diversos países. O momento caracterizado como ponto de não retorno é a primeira reeleição do líder autoritário. Nos EUA, chegava-se a entender que a eventual reeleição de Donald Trump teria uma dimensão de inaugurar um novo momento constitucional na história norte-americana.

Entendo que a reeleição de Bolsonaro teria um significado dramático para o Brasil, porque significaria a reafirmação de um projeto autoritário. Mas a minha avaliação é que isso não ocorrerá, a população hoje rejeita amplamente diversos aspectos do governo Bolsonaro, em especial a sua reação desastrada à pandemia.

Neste contexto, quais países estariam em situação similar à nossa? O exemplo é o dos Estados Unidos. A reação do eleitorado americano à forma como Trump lidou com a pandemia, isso também se reflete no Brasil. A população rejeitou o irracionalismo do governo, o negacionismo do governo, a ausência de compromisso do governo federal com a preservação da vida dos brasileiros.

Quem foram, em sua avaliação, os principais atores que contribuíram para a crise democrática no Brasil e quem se opôs a isso? Na minha opinião, a crise começa em 2013 com aquela explosão social inexplicável, uma crise sem atores, sem direção. Acho que um momento importante foi o da Lava Jato [a partir de 2014], que foi conduzida em muitos momentos sem respeitar a legislação brasileira. O impeachment [de Dilma Rousseff, em 2016] sem a prática clara de um crime de responsabilidade acabou funcionando como uma Caixa de Pandora do autoritarismo.

Por outro lado, com a eleição de Bolsonaro, tenho a visão de que tanto os partidos políticos tradicionais como o Poder Judiciário vêm buscando exercer um papel de moderação do autoritarismo que caracteriza hoje o governo federal. Então, o Congresso, embora dê apoio a Bolsonaro, também tem uma função moderadora. A pauta de armar a população, por exemplo, foi rejeitada no Congresso.

E o STF vem exercendo um papel fundamental na contenção do arbítrio, na garantia de que a política sanitária de combate ao coronavírus se conduza racionalmente, e também na garantia de que as medidas mais autoritárias do governo Bolsonaro não venham a se efetivar.

A eleição de 2018 trouxe para o Parlamento e os governos uma leva de pessoas com o discurso antissistema, que é uma das características dos movimentos que buscam corroer as bases democráticas. Três anos depois, qual foi o desempenho dessas pessoas e o que essa entrada formal delas na política teve como efeito? Não fica saldo nenhum. Essas pessoas negavam a política. E negar a política significa negar a política representativa, o papel dos partidos políticos, do Parlamento, do Judiciário, ou seja, das instituições. E a alternativa a isso é um governo em que o líder político se legitima por meio da aclamação direta das massas. Isso é o populismo. É assim que governos fascistas se legitimavam. Penso que esse movimento, esse impulso antipolítica que conduziu a eleição de Bolsonaro já se arrefeceu e hoje o povo brasileiro tem a consciência de que não há outro caminho para o progresso nacional se não por meio da democracia.

No livro, o sr. também critica especialmente os métodos da Lava Jato. Como classifica a candidatura do ex-juiz Sergio Moro, símbolo e defensor da operação? A minha crítica fundamental à Lava Jato é que o combate à corrupção é fundamental, mas ele sempre tem que se conduzir de acordo com a legalidade. No Estado democrático de Direito não tem caminho curto, só existe o caminho do direito, do devido processo legal. A Lava Jato poderia ter dado uma contribuição importantíssima ao país ao revelar práticas de corrupção deletérias, mas preferiu o caminho do populismo penal.

Já em 2018 Moro dá um passo além, saindo da magistratura e aderindo ao governo que ele ajudou a eleger. E ajudou na condição de magistrado, ao conduzir a operação de modo seletivo, atingindo preferencialmente certos setores da política nacional. Agora, Moro completa essa trajetória, se candidatando à Presidência. O que revela que há uma natureza política em todo esse percurso.

Moro publicou um trabalho sobre a operação Mãos Limpas, na Itália, enfatizando o papel que a Mãos Limpas teve na desestruturação do sistema político italiano. Moro é um juiz que atuou não no sentido de julgar a prática de delitos e aplicar a lei àqueles fatos que foram levados à sua apreciação. Ele atuou no sentido de interferir no sistema político. E essa não é a função que cabe aos magistrados. Magistrados julgam processo, apreciam provas. Não conduzem processos de ruptura social, de transformação social.

Por essa análise, o que eventual vitória de Moro representaria para a democracia brasileira? ​Moro tem sido uma figura monotemática na política nacional. Tem falado de corrupção, mas não revelou suas opiniões sobre economia, política, cultura, sobre os mais variados temas. Se ele reproduzir, em eventual chegada à Presidência, o comportamento que caracterizou sua atuação na magistratura, tenho certeza absoluta: a democracia brasileira está em risco.

No livro o sr. diz que a Lava Jato escolheu, em detrimento do equilíbrio, o caminho do espetáculo, do abuso de poder e da seletividade. A reação a esses abusos, tanto no Judiciário como no Congresso, tem sido a adequada? O sr. não vê risco da adoção de um modelo diametralmente oposto, o da impunidade? Não vejo esse risco. É fundamental que a atuação dos órgãos policiais e do Ministério Público sempre ocorra de acordo com a legislação. Eles têm muito poder, podem interferir de maneira muito incisiva nas liberdades individuais e é absolutamente fundamental em um Estado de Direito que eles se conduzam de acordo com a legislação.

Toda a iniciativa que possa advir do STF no sentido de fazer com que os órgãos de persecução criminal observem a lei é uma iniciativa que tem que ser aplaudida. O Brasil tem um longo histórico de aprimoramento das instituições e do próprio direito para torná-lo mais eficaz no combate à corrupção. Tem várias iniciativas do legislador brasileiro no sentido de aprimorar os instrumentos de combate à corrupção.

Mas não está havendo uma onda contrária a isso, de flexibilizar essas leis? Claro, tem uma onda de moderação, mas não vejo que seja uma onda no sentido de comprometer. O que pode comprometer é o próprio governo autoritário. Veja que o governo Bolsonaro interveio no Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), alterando sua estrutura, transferindo o Coaf para o Banco Central, tentou intervir na Receita Federal, interveio na Polícia Federal. Esse tipo de orientação do líder autoritário, que intervém em instituições dotadas de autonomia, pode, sim, pôr em risco o enfrentamento à corrupção no Brasil

Em linhas gerais, que caminhos a sociedade, políticos e partidos devem trilhar, em sua visão, para evitar que o país prossiga em um caminho de corrosão democrática? O principal é que o compromisso primeiro das forças políticas responsáveis, das organizações da sociedade civil, deve ser com a democracia. Primeiro, as pessoas concordam em estabelecer e preservar o regime democrático. A partir disso é que se dão as divergências, as coisas de economia, a respeito dos mais variados assuntos. Mas um consenso em torno do estado democrático de direito é essencial.

E acho fundamental fortalecer também a consciência de que os países que avançaram no sentido do progresso econômico, social e político percorreram um caminho em que esse processo [de combate à corrupção] foi concomitante. Não é possível ter uma sociedade desigual, com baixa qualidade da educação e, ao mesmo tempo, esperar que essa sociedade seja capaz de debelar por completo a corrupção. A resolução do problema da corrupção se dá no âmbito de um processo concomitante de aprimoramento político, institucional e econômico.

Raio-X

  • Cláudio Pereira de Souza Neto
  • 49 anos
  • Advogado
  • Professor associado de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense
  • Mestre em direito constitucional e teoria do Estado pela PUC-RJ
  • Doutor em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
  • Autor, ao lado de Daniel Sarmento, da representação que levou a Ordem dos Advogados do Brasil a protocolar a ação direta de inconstitucionalidade que resultou na proibição, em 2015, pelo Supremo Tribunal Federal, do financiamento empresarial a partidos e candidatos
  • Autor da ação pela qual o STF fixou as regras do impeachment de presidentes da República, em 2016, estabelecendo, entre outros pontos, que o Senado tem o poder de decidir pelo afastamento do mandatário
  • Foi presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (2010-2012) e Secretário-Geral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (2013-2015)
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