Assédio contra advogadas inclui intimidação e ofensas e entra na mira da OAB

Medo e falta de resposta fazem com que casos vistos como corriqueiros sejam invisibilizados

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Mogi das Cruzes (SP)

A trajetória da advogada Ana Paula Braga, 30, é marcada por diferentes formas de assédio. Começou no estágio, quando em uma reunião o cliente estrangeiro lançava olhares, até tirar uma foto da profissional sem consentimento.

Ao reportar o caso ao chefe, ela conta que ouviu risos e um conselho: use um decote da próxima vez.

Desde 2016, quando abriu com a sócia um escritório em São Paulo especializado em direitos das mulheres e violência de gênero, veio o assédio moral.

Dos emails com ofensas como "víboras", passando por boletins de ocorrência policial contra ameaças e injúrias, até a vez em que foi chamada de "feminazi" por um advogado nos autos de um processo.

"A gente sente que é uma extensão da violência contra as nossas clientes que fazem a nós, uma forma de intimidar a gente no exercício da profissão", diz.

Na foto, Ana Paula Braga, uma mulher loira, branca, está sentada noao lado de uma janela que reflete seu rosto. Ela usa um blaser azul claro, blusa branca e tem as mãos cruzadas sobre a saia azul escura
Especializada em direito da mulher, Ana Paula Braga, 30, advogada, enfrenta situações constantes de assédio no exercício profissional - Mathilde Missioneiro/Folhapress

O assédio aparece de diferentes formas nos relatos de advogadas ouvidas pela Folha, que afirmam que episódios corriqueiros entre elas não fazem parte da rotina de colegas homens.

A ausência de respostas efetivas diante das denúncias, a dificuldade de obtenção de provas e o medo de represálias contribuem para que os casos sejam invisibilizados.

Embora mais da metade da advocacia brasileira seja composta por mulheres, com mais de 632 mil advogadas registradas pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), não há estatísticas sobre o assédio sofrido por elas.

"Foi naturalizado na nossa sociedade que as mulheres, especialmente as mulheres negras, só seriam capazes de prestar alguns serviços, diga-se de passagem serviços que não são intelectuais", diz a advogada Beatriz Almeida, 29.

Advogada negra, ela conta ter enfrentado assédio de clientes homens no Judiciário e em espaços da OAB em fóruns de São Paulo.

"No Judiciário tiveram vezes em que ingressei em uma sala de audiência com a carteira da Ordem nas mãos e o juiz perguntou onde estava a advogada do réu."

Beatriz conta que o episódio mais violento veio de uma advogada branca que, durante uma reunião com outras mulheres, afirmou que ela e outras colegas deveriam "respeitar a base", o que motivou a instauração de um procedimento de investigação por racismo ainda sem resposta.

"Há uma estratégia por trás da discriminação que é praticada contra determinados grupos como as mulheres negras, exatamente para que nós não tenhamos voz nesses espaços."

"Eles nos querem para serem lidos como diversos, mas nós não temos o lugar de fala e as nossas perspectivas não são respeitadas", diz.

Uma mulher negra de pele clara, usando turbante, batom avermelhado, camisa branca com detalhes pretos e blazer verde. Ela posa para a foto com os braços cruzados. Ao fundo, uma estante com itens de decoração e um quadro
Beatriz Almeida, 29, é advogada em São Paulo, onde já teve que lidar com diferentes tipos de assédio e discriminação - Divulgação

Para enfrentar o problema, a OAB nacional começa neste 8 de Março uma agenda de ações de enfrentamento ao assédio que seguirá até o final deste ano.

Uma nova campanha será lançada na próxima semana, com a criação de um canal para denúncias e uma cartilha para orientar as advogadas sobre como reconhecer esse tipo de violência.

"O que a gente quer é trazer essa mulher para perto e ajudá-la a sair dessa situação de verdade", diz a presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada, Cristiane Damasceno, que cuidará pessoalmente das denúncias enviadas por meio de um canal no site da Ordem.

Em 2021, pesquisa Datafolha mostrou que um terço das advogadas relatava já ter sofrido assédio sexual ligado a seus locais de trabalho, por parte de colegas, chefes, clientes ou outros.

Com a criação de um canal nacional para denúncias, Cristiane diz que a OAB pretende divulgar ao final do ano o primeiro levantamento de dados, que servirá para formular políticas específicas.

Iniciativas já existem ou estão em desenvolvimento nas maiores seccionais do país. Na OAB-SP, será criada a Ouvidoria de Gênero, que receberá denúncias sobre violações de prerrogativas. As profissionais também receberão acompanhamento em audiências, além do suporte jurídico e psicológico.

Na OAB-RJ, as denúncias enviadas por email são acompanhadas pela Diretoria de Mulher e há ações de conscientização feitas pelo grupo Enfrentamento à Violência de Gênero.

A OAB-MG destaca a criação da Comissão Especial de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e que há quatro casos de importunação sexual contra advogadas em acompanhamento.

No Paraná, três comissões recebem denúncias de assédio contra as profissionais.

Nos últimos três anos, a seccional afirma ter atuado em pelo menos dez casos de denúncias de assédio moral, de violência doméstica e de violação de prerrogativas, oferecendo assistência jurídica e encaminhamento para canais específicos.

A seccional do Rio Grande do Sul não havia respondido até o fechamento da reportagem.

No Rio de Janeiro, a advogada Carolina Miraglia, 42, recebeu o apoio da seccional da OAB, que denunciou o delegado Maurício Demétrio Alves por abuso de autoridade pela prisão da profissional e da sócia em maio de 2019.

Carolina afirma que conheceu o delegado ao buscar informações sobre o processo de uma cliente, que acusava o padre Marcelo Rossi de plágio.

Na ocasião, segundo a advogada, Alves insistiu de forma agressiva para que a advogada aceitasse almoçar com ele. Ela diz que, depois disso, o delegado Alves enviou uma mensagem com emojis de corações e escreveu: "Adorei você!".

Carolina diz que evitou as ligações do delegado, mas que precisou de um retorno sobre o processo meses depois. Ao voltar à delegacia, ela foi detida por quase três dias e teve o celular confiscado.

"Ele trancou a delegacia e a gente ficou dentro de uma saleta. Quando ele voltou, falou: gente, vocês deixaram a Carolina com fome? Você quer uma saladinha de palmito? E ele entrava toda hora, o tempo todo, tentando me torturar".

"O que me fere, como advogada, como mulher, é que quando você resolve seguir uma profissão você acredita que vai ser respeitada dentro do exercício dela", completa a advogada, que teve o processo contra ela arquivado.

Em 2021, o delegado Alves foi preso acusado de cobrar propina de comerciantes. Procurada, a Polícia Civil do Rio não se manifestou.

A maioria dos casos, porém, não chega às instituições. A Folha ouviu o relato anônimo de duas advogadas de Brasília, que afirmam ter sofrido assédio moral em escritórios onde eram sócias após se tornarem mães.

Uma delas conseguiu reunir provas e fazer um acordo, enquanto a outra foi demitida após voltar da licença maternidade e não denunciou a chefe por medo de represálias na carreira.

No Rio, a criminalista Amanda Magalhães, 34, que presidiu a Comissão Nacional da Advocacia Jovem na gestão de Felipe Santa Cruz, não conseguiu identificar o homem que a assediou por mensagens, dizendo que a observou desde a chegada a uma unidade prisional e que havia copiado o telefone e endereços dela do livro de registro de entrada e saída do local.

"A violação de prerrogativas é potencializada quando se diz respeito a jovens mulheres advogadas. Por todos os relatos que ouvi, e foram muitos, há uma grande razão para que as jovens mulheres advogadas não ocupem alguns espaços, como escritórios, e não é uma razão intelectual. O fato é que nós somos assediadas", diz.

A Secretaria Estado de Administração Penitenciária do Rio lamentou a importunação, mas disse que, como o ato foi anônimo, não era possível dizer que foi praticado por um servidor da pasta.

A secretaria disse não compactuar com ações de importunação e assédio e pediu para que ocorrências semelhantes sejam registradas para identificação dos autores.

A advogada Marina Gadelha, Conselheira Federal da OAB no terceiro mandato pela Paraíba, diz que ela mesma já buscou ajuda após sofrer assédio, mas que é comum que os casos sejam tratados como brincadeira ou interesse legítimo.

"O interesse legítimo exige reciprocidade, o assédio é outra coisa: eu quero dizer que sou homem e estou colocando você no lugar de objeto, não no lugar de sujeito".

Fundadora do Me Too Brasil, a advogada Marina Ganzarolli define o assédio como uma violência estrutural e estruturante, que precisa de respostas institucionais, com protocolos que impeçam a revitimização e garantam que a mulher tenha sua palavra acolhida e alcance a reparação desejada.

"Quando falamos de violações sexuais, o processo de revelação nunca é um evento único, mas um processo. Decidindo denunciar ou não, ela tem que estar apoiada para se sentir segura e acolhida em todas as etapas".

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