Descrição de chapéu Independência, 200

Imprensa do século 19 ligou movimento de Tiradentes à Independência

Inconfidência Mineira, relembrada neste 21 de abril, inspirou amplo debate entre monarquistas e republicanos na década de 1820

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Belo Horizonte

O projeto de independência que se consagrou no Brasil a partir de 1822, capitaneado pelo então regente Pedro e pelas elites políticas e econômicas do sudeste do território, não era o único modelo de emancipação possível à época.

Revoltas separatistas que ocorreram entre o final do século 18 e início do século 19 propuseram, no campo das ideias, alternativas para a independência. Um exemplo foi a Inconfidência Mineira, movimento sufocado pela coroa portuguesa em 1789.

Neste 21 de abril, completam-se 230 anos da morte do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, o maior símbolo da conjuração organizada pelos mineiros.

Tiradentes está de pé, dentro um quarto, enquanto soldados abrem a porta para encontrá-lo. Ele usa uma camisa branca, envolto por uma faixa vermelha, e calça azul. Segura um revólver na mão direita, apontado para baixo.
Estudo para "Prisão de Tiradentes", óleo sobre tela de Antônio Parreiras (1910) - Museu Antônio Parreiras

Influenciada pela independência dos Estados Unidos e por outras ideias que ganharam força no século 18, a conspiração defendia a instalação de uma república e a emancipação de uma parte do território, porção que incluiria Minas Gerais e partes do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Era, portanto, uma forma de governo extremamente dissonante do projeto adotado após a independência do Brasil, que optou pela continuidade da monarquia.

Como diz Luiz Carlos Villalta, professor titular do departamento de história da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a vitória do projeto "centralista, unitário, monárquico e aristocrático" de dom Pedro se deu graças à força das armas e da imprensa.

Ainda assim, de acordo com o historiador, os periódicos da época abrigaram um debate com propostas divergentes, sejam de emancipação, sejam de fidelidade ao império português. Por vezes, esses jornais também recuperavam exemplos de outros movimentos históricos para a construção e defesa desses pontos de vista.

Em capítulo escrito para o livro "Um Mapa dos Brasis: Poderes, Disputas e Sociabilidades na Independência", organizado por Andréa Slemian e Junia Ferreira Furtado, Villalta analisa as menções às revoltas contra a coroa portuguesa nos jornais da corte e das províncias publicados entre 1821 e 1823.

Embora, pela proximidade temporal, sejam mais frequentes as citações relacionadas à Revolução de 1817, que instaurou uma república na capitania de Pernambuco durante 75 dias, foi possível encontrar, como conta o historiador, menções à Conjuração Baiana, de 1798, e à Inconfidência Mineira. O livro, ainda no prelo, tem previsão de publicação no segundo semestre de 2022.

Um exemplo está no Diário Constitucional, jornal da província da Bahia impresso desde agosto de 1821. Em 3 de abril de 1822, o periódico, que se opunha ao processo de independência, publicou: "As Revoluções de Minas e desta cidade [Salvador], ao ver de todos os homens prudentes de então, não passaram de sonhos aventados pelos governadores das duas províncias, a fim de fazerem serviços à Corte, expatriando, sequestrando, infamando e assassinando as famílias sobre quem recaíam suas infundadas, suas atraiçoadas desconfianças".

Na passagem, o jornal minimiza a importância dos dois movimentos e busca convencer seus leitores de que a emancipação deve ser evitada a todo custo.

Trata-se da primeira página do periódico, onde lê-se o nome do jornal, seguido pela frase "escrito por dois brasileiros amigos da nação e da pátria, tomo primeiro". Rio de Janeiro, impresso na tipografia nacional.
Capa da edição do Revérbero Constitucional Fluminense publicada em 29 de janeiro de 1822 - Acervo da Biblioteca Nacional Digital

O debate também se dava de forma mais direta, como mostram as discussões que contrapunham jornais do Rio de Janeiro, a então capital do país. De um lado, O Espelho, ligado à corte e que teve o próprio dom Pedro como eventual colaborador; do outro, o Revérbero Constitucional Fluminense, pró-constitucionalismo e de linha mais independente.

Em janeiro de 1822, o Revérbero se expressou de forma contrária ao Espelho num debate sobre a figura de Tiradentes. Enquanto este último apresentava o mineiro como um criminoso perante Portugal e Brasil, o Revérbero, em edição publicada no dia 29, atribuía a Tiradentes os adjetivos de "malfadado", vítima de um "infausto" e de morte "infeliz", valorizando a memória e os personagens da Inconfidência Mineira.

"Tiradentes foi a pessoa que, no período da Conjuração Mineira, levou a ideia de revolta à população em geral", afirma Villalta. "É interessante considerar esse perfil do movimento, de natureza majoritariamente republicana, como algo complicado num momento em que nós tínhamos em gestação um movimento de independência liderado por um príncipe, de caráter monárquico."

Retrato de Tiradentes. Na imagem, um homem branco de barba e cabelos longos, pretos, olha fixamente para o lado. Há uma corda em volta de seu pescoço.
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, à aparência de Jesus Cristo, em retrato feito por Oscar Pereira da Silva, em 1922; pintura contribui para a construção da ideia de mártir - Acervo do Museu Paulista da USP

No período que antecede o grito do Ipiranga, surgiram sinais de um fantasma republicano que parecia assombrar os planos do futuro império, como relata o professor.

"Havia apropriações nos idos da Independência da seguinte forma: isso que já aconteceu em Minas, na Bahia e em Pernambuco pode acontecer agora, de novo. Alguns jornais até endossam essa possibilidade. Para outros, contudo, era um perigo".

Esse perigo foi verbalizado por atores políticos da época. Villalta conta que, em pronunciamento no Rio de Janeiro, o deputado José Clemente Pereira pressionou Pedro para acelerar um processo de ruptura com o império português. Para isso, Pereira destacou a falta de autoridade do então regente em algumas regiões de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco e reforçou que o movimento republicano, embora silencioso, não estava morto.

"Havia um entendimento por parte de alguns jornais de que, sobretudo, a Conjuração de Minas e a Revolução de 1817 eram manifestações antidespóticas e que deveriam ser cultuadas, exatamente neste momento em que se lutava contra o despotismo colonial e contra o absolutismo. Havia uma luta pela memória", diz o historiador.

República em Minas Gerais

Reprimida antes mesmo de se efetivar em revolta, a Inconfidência Mineira foi uma articulação da elite socioeconômica das comarcas de Vila Rica, São João del-Rei e Serro Frio, motivada por uma crescente insatisfação com a administração portuguesa no território.

Embora sem uma data precisa de início, a conspiração eclodiu em 1788 com a promessa da derrama (imposto cobrado para assegurar o cumprimento da cota anual de ouro devido à metrópole) e o sequestro de mais de oito toneladas de ouro dos moradores da capitania.

Entre os inconfidentes mais conhecidos, estão o autor de "Marília de Dirceu", Tomás Antônio Gonzaga, o poeta Cláudio Manuel da Costa, o padre Carlos Correia de Toledo e Melo e, claro, Tiradentes, o único membro do movimento levado à morte.

Numa pintura a óleo, está retratada uma comitiva que segue cabisbaixa num ambiente rural, alguns a pé, outros a cavalo, acompanhada por guardas armados.
Óleo sobre tela "Jornada dos Mártires" (1928), de Antônio Parreiras, retrata a passagem dos inconfidentes presos por Matias Barbosa, cidade de Minas Gerais - Acervo Fundação Museu Mariano Procópio

"Pela primeira vez, há uma ideia de independência que é colocada de pé no país. E essa ideia fica de pé. Isso é fundamental para a história do Brasil", resume o jornalista e escritor Lucas Figueiredo, autor do livro "O Tiradentes: Uma Biografia de José da Silva Xavier".

"É um grupo que começa a falar, em voz alta, que é possível criar um território autônomo nas Américas, a exemplo do que tinha sido feito nos Estados Unidos [em 1776]. E essa ideia é muito potente, por mais que esse grupo não tenha tido êxito", diz o biógrafo.

Ele ressalta, entretanto, que existem diferenças fundamentais entre o movimento pregado pelos inconfidentes e a independência que se efetivou em 1822. Uma delas seria de ordem geográfica: a independência de Pedro prezou pela manutenção da unidade territorial, conquista alcançada após muitas batalhas, e os inconfidentes previam apenas a separação da capitania de Minas Gerais, expandindo para algumas regiões de São Paulo e Rio de Janeiro. "Não existia essa entidade 'Brasil', na época", lembra Fiqueiredo.

Outra diferença relevante, segundo Villalta, estava no caráter da conspiração: ainda que existissem algumas vozes monárquicas entre os inconfidentes, o movimento era preponderantemente republicano e constitucional.

Na biografia, Figueiredo conta que um dos apelidos usados por colegas para se referir a Tiradentes era "o República", tamanha a sua admiração pelas ideias do momento.

O alferes levava sempre a tiracolo o "Récueil des Loix Constitutives des États-Unis de l’Amérique", livro com coletânea das leis constitucionais dos EUA. "Ele ficou louco com esse livro, mas não lia francês. Então usou um dicionário e foi traduzindo palavra por palavra. E também pedia a amigos que traduzissem outras partes", afirma o biógrafo.

A construção do mito

Além de esquartejar o corpo de Tiradentes e exibir a cabeça do inconfidente em praça pública, a coroa portuguesa destruiu a casa onde o alferes morava, salgou o terreno para que nada ali crescesse e construiu um monumento chamado Padrão da Infâmia, num gesto que visava desonrar a memória do movimento e evitar que outras revoltas o tomassem como exemplo.

Em 1821, o jornal Semanário Cívico, da Bahia, de nítida orientação antirrepublicana e de oposição à Independência do Brasil, recuperava a derrota da Inconfidência Mineira para argumentar que o povo brasileiro não estava preparado para as ideias suscitadas pelo Iluminismo.

Em 19 de julho, o periódico publicava que as luzes resultaram "que uns se tornaram libertinos e outros, fanáticos republicanos, sem terem ideias exatas dessa forma de governo e que, desgraçadamente, produziu o começo de uma revolução em Minas, em 1787 e outra na Bahia, em 1798, que ambas o Governo facilmente abafou, punindo os principais de seus autores".

Essa visão crítica em relação à conspiração, entretanto, seria logo alterada. Com a Revolução Constitucionalista do Porto, de 1820, que limitou os poderes absolutistas do rei de Portugal, houve também uma mudança de orientação dos governos das províncias brasileiras, inclusive Minas Gerais.

O novo governo, de caráter mais liberal, derrubou o Padrão da Infâmia, abrindo o caminho para que Tiradentes começasse a ser reconhecido enquanto mártir.

"Tem muita gente que crê que o Tiradentes é um mito republicano. Não é, ele é mito já do império", reforça o professor Villalta. "Foi um mito muito bem construído porque envolveu a publicação de textos nos jornais e a criação de modismos. Tudo isso indica uma mobilização de grupos já no Império, num movimento que vai se fortalecendo e vai, de alguma maneira, corroendo a monarquia".

Figueiredo defende uma volta à ideia e à figura de Tiradentes, especialmente para concluir um projeto de nação, iniciado pelos movimentos a favor da liberdade do território, que se encontra na metade.

"A gente sai de algum lugar em 1789, achando que íamos chegar em determinado ponto, mas ainda estamos no meio do caminho. Não acabou essa história. Aliás, ainda está longe de acabar", ele afirma.

"Por isso fica esse fascínio com a ideia de Tiradentes. Olhar para Tiradentes é como olhar para um espelho borrado. A gente fica tentando vê-lo na esperança de se reconhecer em algum momento."

Erramos: o texto foi alterado

Ao contrário do que foi publicado originalmente, a derrama prometida em 1788-1789 não foi decretada. Essa medida inclusive minou a estratégia dos inconfidentes. O texto já foi corrigido.

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