Descrição de chapéu Governo Bolsonaro Folhajus

Indulto como o dado por Bolsonaro remonta à monarquia e foi aplicado no pós-guerra

Concessão de perdão é vista como medida de conciliação, disseminou-se em democracias e já foi aplicada pelo papa

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São Paulo

Nenhum poder dado ao presidente é mais nobre, escreveu Ruy Barbosa mais de um século atrás, do que o de conceder o indulto. "É a sua colaboração na Justiça. Não se lhe deu para se entregar ao arbítrio."

À época, o então senador fez as afirmações para criticar o uso do instrumento pelo então presidente Hermes da Fonseca, seu antigo adversário na eleição presidencial de 1910.

Citava três casos de favorecimento de acusados supostamente com ligações com o governo da época, como um cabo do Exército condenado por homicídio, agraciado 11 dias depois da confirmação da condenação.

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Estátua da Justiça, em frente a prédio do STF - Alan Marques-12.ago.13/Folhapress

Antes de provocar uma crise institucional entre o presidente Jair Bolsonaro e o STF (Supremo Tribunal Federal), decretos presidenciais de indulto já beneficiaram combatentes da Segunda Guerra Mundial, réus do mensalão e até os irmãos Gracie, precursores do jiu-jítsu, que tinham sido sentenciados por lesão corporal na época do governo Getúlio Vargas.

Todos esses precedentes foram consumados na modalidade do indulto coletivo, quando um mesmo despacho do presidente extingue a punição, sem citar indivíduos nominalmente, de um conjunto de condenados que se enquadram em critérios como um teto de penas.

O decreto expedido por Bolsonaro, que gerou um impasse político com a mais alta corte, era específico para o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado horas antes a quase nove anos de prisão por ameaçar magistrados do tribunal.

Quando o perdão é decretado individualmente, também é chamado de graça.

Precedentes desse tipo de benefício, como os criticados por Ruy Barbosa, são mais incomuns na história política brasileira.

Após a Segunda Guerra, o presidente interino José Linhares, que assumiu após a queda de Getúlio, concedeu indulto individualmente a dois civis italianos que atuavam para as forças expedicionárias do Brasil na Europa.

Ambos tinham sido condenados por crimes como homicídio e furto pela Justiça Militar brasileira.

Em 1992, em meio a uma crise política que acabou lhe custando o mandato, o então presidente Fernando Collor concedeu a graça para um homem condenado por roubo. Procurado pela reportagem, Collor, hoje senador pelo PTB de Alagoas, não respondeu a respeito das motivações para aquele ato.

Antes de Bolsonaro, foi só na década passada que o uso desse instrumento pela Presidência da República despertou controvérsia política.

No Natal de 2017, o então presidente Michel Temer seguiu a tradição de expedir um decreto coletivo de indulto nessa época do ano, mas com condicionantes mais generosas em relação a anos anteriores.

A flexibilidade foi interpretada como uma manobra para beneficiar réus da Lava Jato, e o decreto coletivo acabou barrado provisoriamente no Supremo. A situação foi a julgamento no plenário da corte no ano seguinte e terminou com vitória da tese presidencial por 7 votos a 4.

Nos debates, chegou a ser mencionado o caso do italiano Cesare Battisti, condenado por homicídios em seu país e que permaneceu por anos no Brasil em decorrência de decisão do então presidente Lula (PT) de não extraditá-lo, em 2010.

Naquele episódio, o Supremo considerou que a palavra final sobre atender ou não ao pedido das autoridades italianas cabia à Presidência da República, que optou por autorizar a permanência no país. Posteriormente, no governo Temer, a medida foi revista.

No julgamento de três anos atrás, o pivô da decisão de manter o decreto de indulto presidencial foi justamente Alexandre de Moraes, primeiro a divergir da tese do relator, Luís Roberto Barroso, na ocasião.

Disse, no contexto da discussão sobre o decreto coletivo, que indulto é "mecanismo de freios e contrapesos" na República, estabelecido na Assembleia Constituinte, embora possa haver controle se demonstrado algum desvio de finalidade.

A ministra Rosa Weber, também no julgamento no Supremo, fez um histórico dessa prerrogativa e citou jurista britânico do século 18 para quem o poder de conceder indulto não seria compatível "com a democracia". Mas votou afirmando que a Constituição dá "ampla liberdade decisória" ao presidente.

Tipo de clemência é alvo de questionamentos

Ainda hoje, a existência desse tipo de clemência é questionada dentro e fora do meio jurídico. Suas origens são atribuídas à Grécia Antiga, mais especificamente ao estadista e legislador Sólon, em 590 a.C.

"Na Idade Média, era uma forma de perdão, uma lei de esquecimento. Depois de grandes guerras, o monarca então procurava o apaziguamento social e dava o indulto para que as forças beligerantes se sincronizassem dentro de um novo poder", diz o professor Álvaro Mayrink da Costa, que foi magistrado no Rio de Janeiro por 40 anos.

Ele afirma que o objetivo é buscar a "paz social", o que hoje pode ser entendido como reduzir a superlotação carcerária ou encampar uma ação humanitária. Nada disso, diz ele, se encaixa na medida tomada por Bolsonaro agora.

O fato é que o instrumento se enraizou em democracias ocidentais e está disseminado a ponto de o papa Bento 16 ter o utilizado, em 2012, para tirar da prisão um ex-mordomo que havia furtado documentos confidenciais e os repassado à imprensa.

O mais famoso caso de indulto individual foi o concedido em 1974 pelo então presidente americano Gerald Ford ao seu antecessor, Richard Nixon, que havia renunciado semanas antes em decorrência do escândalo de Watergate.

No Brasil, o perdão existe desde a época da Independência. A primeira Constituição, de 1824, já previa como uma das atribuições do imperador agir "perdoando e moderando as penas impostas" aos réus condenados, sem estabelecer restrições.

Com a Proclamação da República, esse tipo de prerrogativa passou a ser do presidente. Hoje, a Constituição barra o perdão apenas em casos de tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos.

O professor de direito Guilherme Nucci, da PUC-SP, lembra que os Três Poderes da República possuem competência para perdoar a prática de crimes ou criminosos.

O Legislativo, diz, se vale da anistia, como a estabelecida nos anos finais da ditadura militar. No Judiciário também há hipóteses previstas de perdão judicial, e ao Executivo há a possibilidade de concessão do indulto.

"A graça é antiga e se volta a cenários jurídicos particulares, quando o Judiciário não pode perdoar, porque inexiste previsão legal, e o condenado teve uma atitude heroica ou uma condenação injusta. Então, o 'soberano' concede graça."

O professor, que também é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma que é viável que "um dia se possa questionar o fundo da questão: 'para que existe a graça?'". Eventualmente isso esvaziaria esse poder do chefe do Executivo, caso não esteja em jogo motivos humanitários ou compensadores.

"Tal avaliação somente poderia ser feita pelo STF, na sua condição de intérprete da Constituição", diz ele.

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