Brasil vive espécie de apartheid institucional, diz pesquisador

Luiz Augusto Campos defende cotas eleitorais para romper ciclo de desigualdade racial

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São Paulo

Quem produz políticas públicas no Brasil? A pergunta retórica é do sociólogo Luiz Augusto Campos, que responde: "Homens brancos". E quais são as pessoas mais atingidas pelas ações estatais na área da educação, da saúde, da segurança? "É basicamente a população negra."

A situação, diz ele, remete ao regime de segregação racial adotado na África do Sul de 1948 a 1994. "[Existe] uma espécie de apartheid institucional no Brasil", afirma Campos. "São homens brancos gerindo políticas para mulheres e homens negros."

Para romper com esse ciclo, ele defende a adoção de cotas eleitorais no Brasil, de modo a garantir maior presença de pessoas negras e de mulheres entre deputados.

Professor de sociologia e ciência política Luiz Augusto Campos
O professor de sociologia e ciência política Luiz Augusto Campos - Ricardo Borges - 12.ago.2020/Folhapress

Coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ele argumenta que não se trata de deixar o Parlamento igual à população brasileira, mas de garantir que mais ideias estejam representadas.

​O estudo "Desigualdade Racial nas Eleições Brasileiras", conduzido pelos economistas Sergio Firpo, Michael França, Alysson Portella e Rafael Tavares, pesquisadores do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, mostrou que o percentual de negros e de mulheres entre deputados é muito menor do que seu peso na população em todos os estados.

Para Campos, embora o contexto atual dificulte o avanço de discussões sobre esse tema, o debate não pode ser paralisado. "A gente está em um momento em que ser conservador nas conquistas que a gente já tem é ser progressista."

Estudos mostram que a população negra está mais sub-representada entre políticos eleitos no Brasil do que entre candidatos. Existem evidências de que o preconceito racial interfere no voto? As pesquisas sobre isso são poucas e vão em direções opostas. As mais sistemáticas não identificam viés racial no voto do eleitor brasileiro, mas é preciso ponderar algumas coisas.

Existe nesses estudos uma pressuposição de que, se há poucos negros na política, é porque o brasileiro não vota em negro. Só que essa pressuposição é falha, porque ignora que, no sistema político brasileiro, o candidato não depende só do voto. Depende de uma série de outras coisas.

Uma delas é acesso a partidos políticos importantes. Se você se candidata por um partido político muito pequeno que não consegue fazer o coeficiente eleitoral, você não vai conseguir ocupar cadeiras.

Outro elemento é acesso a recursos de campanha, sobretudo dinheiro. O que as minhas pesquisas com o professor Carlos Machado mostram é que o acesso a esses recursos tem um viés racial muito forte. Mesmo quando a gente controla classe, quando a gente conta gênero, a gente vê que candidatos negros têm mais dificuldade de captar recursos.

Os filtros aos negros na política não estão conectados necessariamente ao voto do eleitor. Eles são anteriores.

Como o financiamento de campanha desequilibra o acesso a cargos políticos? Existe uma quantidade substantiva de candidatos negros. O filtro não está aí. O filtro principal está no acesso a recursos de campanha. Isso não é exclusivo do Brasil, infelizmente. Isso se aplica a quase todas as grandes democracias desiguais, como os EUA.

O acesso ao dinheiro quase sempre leva ao acesso a voto. No Brasil, há uma correlação quase que perfeita. Quem tem mais dinheiro tem muito mais chance de se eleger, quem tem pouco dinheiro tem muito menos chance de se eleger. Se há desigualdade racial no acesso aos recursos e se o acesso a recursos aumenta as chances eleitorais, então a gente tem aí uma máquina de reproduzir e de aprofundar desigualdades raciais na política.

A questão que se coloca é: como a gente contorna isso? A medida do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) foi importante, mas é problemática porque vai ter essa anistia e porque existem muitos métodos de os partidos burlarem isso [o tribunal definiu critérios de equidade na distribuição de recursos entre candidatos negros e brancos].

Eu acho que a gente tem que avançar em relação a uma discussão sobre cotas para o Parlamento, cotas mínimas, para além das chances eleitorais. E cotas em outros espaços também.

Como o dinheiro aumenta as chances do candidato na prática? Quem tem mais acesso ao dinheiro tem mais acesso ao eleitor. Tem uma coisa banal no sistema eleitoral brasileiro, e que foi muito prejudicada com as mudanças recentes nas regras, que é o fato de termos muito candidato para pouca vaga.

Um primeiro custo é o eleitor conhecer os candidatos. Quais candidatos chegam à gente através de santinho, de horário eleitoral de TV, de passeatas e presença em lugares-chave? Esses candidatos chegam até a gente porque eles têm acesso a dinheiro.

As mudanças recentes diminuíram o tamanho das eleições. O que só prejudicou nesse sentido, porque agora as eleições são muito rápidas e o eleitor tem menos tempo para conhecer os candidatos, o que faz com que os candidatos que já tenham acesso a dinheiro, que já foram eleitos [em outros pleitos], sejam mais conhecidos e sejam eleitos.

Quem tem mais acesso ao dinheiro também pode contratar mais cabos eleitorais, contratar assessorias que irão fazer estimativas mais adequadas [sobre a campanha], contratar pesquisas. Você não faz uma campanha no Brasil sem muito dinheiro.

O sr. mencionou cotas. Há espaço político para iniciar um debate desses no Congresso? Espaço político para debate, agora, não existe para nada. A gente está em um momento em que ser conservador nas conquistas que a gente já tem é ser progressista. Se a gente conseguir manter a Lei de Cotas como ela está hoje em dia, será uma conquista gigantesca diante do momento regressivo que a gente vive. Mas não acho que a gente possa paralisar o debate por conta disso.

Eu acho que tem espaço para cotas, sim. Fazer uma cota em um sistema eleitoral como o nosso é muito mais difícil do que em sistemas eleitorais de outros países. Mas a gente precisa pensar criativamente. Existem várias ideias.

Uma delas é a cota de financiamento, que de certa forma já foi implementada. Acho que a gente tem que pensar em cotas dentro dos partidos, nas listas partidárias. Embora a gente tenha tido em 2020 metade dos candidatos autodeclarados pretos e pardos, houve muita desigualdade entre os partidos. É preciso que eles [candidatos negros] se distribuam de forma mais equânime entre os partidos para que tenham chance de eleição.

E temos que pensar em cotas eleitorais mesmo. Se um partido elegeu mais que um determinado número de candidatos, esse partido teria que ocupar essas vagas com seus candidatos brancos e com X candidatos negros.

Alguém pode dizer: "Ah, esse candidato negro não recebeu tantos votos quanto o candidato branco". Mas isso já acontece em todas as eleições. Tem a ver com princípio de proporcionalidade. Por que a gente não pode aplicar esse princípio de proporcionalidade a candidaturas pretas e pardas?

Por que isso seria importante? Quando a gente está falando de representação política, a gente está falando sobre a sensação de se sentir representado. Quando eu, enquanto eleitor, me sinto representado? Eu me sinto representado quando vejo que minhas ideias estão representadas. Mas não só isso. Uma série de debates precisa de um conhecimento vivido por minorias políticas que não estão presentes na política brasileira.

Se você for, por exemplo, debater aborto. Eu posso ter a minha opinião representada na política brasileira. Agora, um Parlamento com 90% de homens poderia deliberar sobre o direito ao aborto com a mesma qualidade que um Parlamento com mais mulheres?

A gente vai ter, por exemplo, um Parlamento que irá deliberar sobre ações afirmativas raciais. Um Parlamento com uma quantidade maior de pessoas brancas do que a proporção da população pode deliberar a contento sobre as situações que atingem mais que 50% da população brasileira?

A gente se sente representado quando sente que os políticos são parecidos conosco. Não é que o Parlamento precise ser igual à população brasileira. Mas a gente não pode ter um Parlamento e uma política dominados por homens brancos de meia-idade e de classes média, alta e superiores. Isso precisa ser matizado para que a discussão política tenha alguma qualidade.

Essas questões estão em linha com a reserva de vagas? Sim. O que a gente está discutindo quando se fala em ação afirmativa é um número mínimo. Existe um grande alarde em relação às cotas no ensino superior, mas, a rigor, elas garantem uma representatividade de metade da proporção da população negra num determinado estado.

As cotas, em geral, são pequenas [na comparação com o tamanho da população negra]. Se a população negra e feminina gira em torno de metade da população, acho que a gente deveria pensar em cota de 20%, 25%.

A população indígena brasileira precisa ter seus direitos protegidos. Ela gira em torno de 1% da população. A gente deveria pensar em reservas de vagas maiores que isso. O que está em jogo é: como você faz com que setores da sociedade que têm uma vivência específica tenham representação mínima para proteger minimamente seus direitos?

Tem outro elemento que é uma espécie de apartheid institucional no Brasil. Quem é atingido pelas medidas estatais no Brasil? Quem é atingido pela política sobre escola pública? É basicamente a população negra.

Quem é atingido pela política de saúde pública? Basicamente a população negra, sobretudo mulheres negras. Quem é atingido pela política de segurança pública, de controle do crime? Basicamente a população negra –nesse caso, atingida bem negativamente.

Quem produz essas políticas e quem gere essas políticas? Homens brancos. Isso gera um cenário de apartheid institucional. São homens brancos gerindo políticas para mulheres e homens negros.

Raio-X

Luiz Augusto Campos, 37
Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), é professor do mesmo instituto. É editor-chefe da revista Dados e coordenador do Observatório das Ciências Sociais (OCS) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa). É autor do livro "Raça e Eleições no Brasil" (Zouk, 2020), em parceria com Carlos Machado

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