Indigenista tentava legalizar pescadores em área sob atuação do narcotráfico

Visita de Bruno Pereira à comunidade onde foi visto pela última vez era para sensibilizar ribeirinhos a legalizar atividade

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Manaus

​O indigenista licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio) Bruno Pereira, 41, atuava na região onde desapareceu no último dia 5 para que comunidades ribeirinhas explorassem de forma legal a pesca, atividade financiada e usada na região para lavar dinheiro do narcotráfico.

Ele e o jornalista britânico Dom Phillips, 57, foram vistos pela última vez na manhã de domingo na terra indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, a segunda maior do país, num desaparecimento que ganhou repercussão internacional.

Após visitarem uma base da Funai no Lago do Jaburu, pararam na comunidade São Rafael para uma reunião e seguiram viagem pelo rio Itaquaí em direção a Atalaia do Norte, mas desapareceram no trecho.

O jornalista britânico Dom Phillips (à esq.), colaborador do jornal The Guardian, e o indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira
O jornalista britânico Dom Phillips (à esq.), colaborador do jornal The Guardian, e o indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira - @domphillips no Twitter e Daniel Marenco/Agência O Globo

Há anos, o impasse na tentativa de sensibilizar as comunidades, os entraves na legalização da pesca e até conflitos violentos no município de Atalaia do Norte têm como pano de fundo o agenciamento de moradores pelo narcotráfico, que usa a região como rota de escoamento de cocaína do Peru para Europa, África e Sul do Brasil.

Na última vez em que foi visto na companhia de Phillips, Pereira tentava sensibilizar a comunidade de São Rafael a esse respeito.

A informação foi confirmada pela Univaja (União das Organizações Indígenas do Vale do Javari), para quem ele prestava consultoria.

A terra indígena Vale do Javari tem uma população de cerca de 6.300 indígenas marubo, matís, mayoruna, kulina pano, kanamari, tson wük dyapah e um pequeno grupo de korubo contatado, além da maior população de indígenas não contatados do mundo, que não estão no cálculo populacional.

Ela tem 8,5 milhões de hectares, área equivalente a 56 vezes o tamanho do município de São Paulo, e seu tamanho propicia a invasão da pesca e caça ilegal.

As ameaças contra quem tentava atrair os ribeirinhos dessas comunidades para a legalização não se restringiam só ao indigenista desaparecido.

O professor Pedro Rapozo, da UEA (Universidade do Estado do Amazonas), e uma funcionária do setor primário do Amazonas —que falou com a Folha na condição de anonimato— relataram que foram ameaçados devido a esse trabalho na comunidade de São Rafael.

Ambos optaram por não voltar ao local por temerem risco de morte. Rapozo, que também é coordenador do Nesam (Núcleo de Estudos Socioambientais da Amazônia), disse que a expectativa de Pereira e de outras pessoas que atuam em defesa da terra indígena era de que a pesca legal e o manejo nos lagos fora do Vale do Javari servissem de alternativa de renda para os ribeirinhos, diminuindo as invasões.

O grupo tinha como objetivo transformar as comunidades em ponto de monitoramento do território demarcado.

"E era justamente esse trabalho que o Bruno queria fazer com o Churrasco [líder comunitário com quem Bruno tinha conversa marcada antes de desaparecer]. Porque ele [Bruno] compreende que fazendo isso tinha uma capacidade de monitoramento destes lagos e, consequentemente, da terra indígena", diz o professor.

Segundo ele, as comunidades estão na borda do Vale do Javari e muito vulneráveis à presença de redes e agentes externos, que têm interesse na comercialização ilegal de recursos naturais.

Rapozo disse ainda que a influência do narcotráfico na região, financiando atividades de exploração ilegal da floresta, é de conhecimento das autoridades locais.

Conforme o pesquisador, a rede de crimes financia inclusive os chamados "serviços de assassinato", que é a suspeita para o homicídio do colaborador da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari da Funai Maxciel Pereira dos Santos.

Ele, que foi morto a tiros em Tabatinga (AM), na fronteira com Peru e Colômbia, em setembro de 2019, era comprometido com o trabalho no vale e atuava contra caçadores e outros invasores.

"A gente tem assistido, inclusive em Atalaia do Norte, alguns casos de homicídio associados a facções locais. Não é algo que está sendo descoberto agora na região", afirmou o pesquisador.

A tentativa de apoiar os ribeirinhos para a pesca de manejo legalizada começou em 2015 e, dois anos depois, com o apoio da universidade e da Prefeitura de Atalaia do Norte, as três comunidades do Lago do Jaburu (São Rafael, São Gabriel e Ladário) já haviam conquistado certificações e acordos de pesca legal com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), segundo Rapozo.

O caminho parecia promissor porque os lagos têm capacidade expressiva de recursos pesqueiros, sobretudo pirarucu. Mas, apesar dos avanços, o manejo do peixe empacou nas comunidades do Jaburu.

"Tinha poucos moradores comprometidos e uma quantidade maior de agentes externos ligados a moradores locais que discordavam do manejo e queriam entrar nos lagos de qualquer forma. Essas pessoas que discordavam, acredito eu, recebiam algum tipo de financiamento desses agentes externos."

Rapozo disse que, neste período, decidiu se afastar e que não pode voltar à região, pois já sofreu ameaça de morte. "O trabalho já tinha sofrido mais de três vezes ameaças de mortes. Não só ele [Bruno]. A gente também."

A funcionária do setor primário teve o mesmo problema em outubro de 2021 na comunidade São Rafael. Ela disse ainda que em Atalaia do Norte, antes de embarcar para a comunidade, foi avisada "de que não sabia com quem estava se metendo".

A viagem a serviço era para notificar a comunidade que não estava cumprindo acordo de pesca do pirarucu e captura de quelônios, autorizada no Amazonas apenas por manejo como forma de conservação das espécies. Além disso, a equipe dela ia fomentar o cooperativismo em São Rafael.

A funcionária disse que, antes de sair da cidade, comunicou a família sobre o "aviso", seguiu o roteiro e se impressionou sobre como os moradores falavam com naturalidade dos ilícitos ambientais e de recursos de traficantes.

Ela relatou que eles diziam que os traficantes compravam a pesca ilegal, e os pescadores se recusavam a cumprir as normas técnicas e legais do manejo.

Os moradores da comunidade continuavam a pesca na terra indígena e usavam venenos nos rios e lagos como métodos de retirada do pirarucu, o que gera desequilíbrio natural, matando espécies que não servirão para a comercialização e deixando-os apodrecer nos rios.

Segundo a servidora, tudo foi relatado à chefia, assim como o pedido para que não voltasse à comunidade em função dos riscos.

Rapozo disse que a pesca ilegal virou uma forma de lavagem de dinheiro naquela região como meio de diversificar e maximizar o lucro do tráfico de cocaína.

"O traficante pega uma parte e investe num barqueiro, equipa um barco com arrastão. Ele agencia a comunidade para entrar de forma ilegal porque os comunitários conhecem como entrar no Vale do Javari sem serem monitorados, sem passar pela base e o rio principal. E o retorno disso é um dinheiro limpo comercializado aqui. Tabatinga e Letícia são mercados consumidores de pescado e de exportação. Para consumo e peixe ornamental", disse.

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