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PT usa eufemismo em plano de governo para suavizar temas defendidos por Lula

Assuntos como reforma do Judiciário, aborto e taxação de dividendos foram sutilmente mencionados em texto prévio

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São Paulo

Em um aceno aos setores mais conservadores da sociedade e potenciais aliados ao centro, a prévia do plano de governo da chapa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seu vice, o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB), suaviza propostas controversas já defendidas pelo próprio petista e seus aliados.

Assuntos como reforma do Judiciário, aborto e taxação de dividendos foram sutilmente mencionados nas diretrizes divulgadas na segunda-feira (6).

Algumas dessas propostas constavam, inclusive, no programa de governo apresentado pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT) em 2018 —mas que levavam a assinatura de Lula.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB)
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB) - Nelson Almeida/AFP

Com 90 parágrafos, o documento define os governos petistas como inovadores no combate à corrupção, reforça o papel do Estado na economia, enaltece o Bolsa Família e propõe a revogação do teto de gastos e da reforma trabalhista implementada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), além da revisão do regime fiscal.

O texto defende ainda o fortalecimento dos sindicatos sem a volta do imposto sindical, a construção de um novo sistema de negociação coletiva e uma "especial atenção aos trabalhadores informais e de aplicativos".

Como mostrou a Folha, a veiculação do texto preliminar do plano de governo causou mal-estar entre aliados de sua pré-campanha ao Palácio do Planalto.

A começar pelo PSB, do ex-governador Alckmin, dirigentes de partidos que integram a aliança se queixaram da exclusão de propostas encaminhadas e do vazamento do documento sem prévio debate.

Veja abaixo os eufemismos usados na redação do documento. Ele ainda será submetido a contribuições dos partidos aliados, movimentos sociais, entidades e sociedade civil.

ABORTO

"O Estado deve coordenar uma política pública de cuidados e assegurar às mulheres o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos, políticas essenciais para a construção de uma sociedade mais igual."

No trecho destacado, o documento não cita a palavra "aborto", tema considerado polêmico em campanhas eleitorais.

No início de abril, o ex-presidente Lula afirmou que o aborto deveria ser um "direito de todo mundo".

Diante da repercussão e das críticas, no dia seguinte, o petista tentou contornar as declarações, posicionou-se pessoalmente contra o aborto e defendeu o tratamento para mulheres que realizarem o procedimento na rede pública de saúde.

A professora Debora Diniz, da UnB, afirma que o conceito de direitos sexuais e reprodutivos é amplo e não pode ser interpretado restritivamente —ou seja, não faz referência somente ao aborto.

Ela diz que ele não representa "só um fragmento da proteção à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos", mas sim "um ecossistema de necessidades e proteções" que vão desde a educação sexual nas escolas e violência contra a mulher até o acesso a contraceptivos, ao aborto e ao cuidado pós-aborto.

"Esse não é um conceito que se permite ser lido restritivamente. Tem que ser lido de uma maneira holística e compreensiva, tocando diferentes facetas da vida das mulheres", diz.

Debora afirma ainda que acrescentaria à proposta do plano de governo o conceito de racismo. "Ao se falar de machismo e sexismo é muito importante se falar sobre o racismo, que são atravessadores da vida das mulheres."

RICOS

"Proporemos uma reforma tributária solidária, justa e sustentável, que simplifique tributos e distribua renda. Essa reforma será construída na perspectiva do desenvolvimento, "simplificando" e reduzindo a tributação do consumo, corrigindo a injustiça tributária ao elevar a taxação de renda sobre os muito ricos, preservando o financiamento do Estado de bem-estar social."

O esqueleto do programa de Lula fala em correção de injustiça tributária, mas não detalha pontos de sua reforma tributária.

O plano de governo apresentado em 2018 pelo então candidato Fernando Haddad previa, entre as medidas, a tributação direta sobre lucros e dividendos e a criação e implementação gradual de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) em substituição à atual estrutura de impostos indiretos.

"No âmbito da reforma tributária, o governo Haddad vai criar implantar o imposto de renda justo, que prevê a reestruturação da tabela do imposto de pessoa física, para isentar quem ganha até cinco salários mínimos, condicionado ao aumento das alíquotas para os super ricos", dizia.

FORÇAS ARMADAS

"Cumprindo estritamente o que está definido pela Constituição, as Forças Armadas atuarão na defesa do território nacional, do espaço aéreo e do mar territorial. A partir de diretrizes dos Poderes da República, colaborarão na cooperação com organismos multilaterais e na modernização do complexo industrial e tecnológico da defesa."

A prévia do plano de governo de Lula afirma que as Forças Armadas atuarão a partir de diretrizes dos Poderes da República, mas não explicita se repetirá a promessa de nomeação de um civil para o comando da Defesa.

Na avaliação de pessoas ligadas à elaboração do documento, o trecho destacado não aprofundou o papel das Forças Armadas. Como a Folha mostrou, a relação com militares, setor alinhado ao presidente Jair Bolsonaro (PL), ainda é um desafio para a chapa Lula-Alckmin.

Mesmo duvidando de uma predisposição para um golpe no caso de vitória de Lula, petistas temem que os militares cruzem os braços diante de um eventual arroubo autoritário de Bolsonaro.

Em abril passado, Lula disse que um dos desafios que teria à frente do governo seria o de demitir cerca de 8.000 militares que, segundo ele, estariam em cargos comissionados.

"Vamos ter que tirar mais quase 8.000 militares que estão em cargos de pessoas que não prestaram concurso. Isso não pode ser motivo de bravata", disse.

ARMAS

"A integração com governos estaduais e municipais, o foco na priorização da vida, no controle de armas, em inteligência policial, em tecnologia de ponta e na valorização profissional dos policiais nortearão nossas ações, que enfrentarão a violência, a corrupção, a lavagem de dinheiro, as movimentações financeiras e a rede de negócios ilegais dos grupos armados organizados".

No parágrafo sobre segurança, a minuta do novo plano de governo de Lula promete integração com os governos estaduais e municipais e controle de armas. Mas não explica se essa será a federalização da política de segurança pública já defendida no programa de Haddad.

Em 2018, o plano de Haddad dizia que o governo assumiria "suas responsabilidades no enfrentamento da criminalidade", permitindo uma experiência inovadora de atuação da Polícia Federal no ciclo completo na cadeia do crime.

O programa de Haddad também propunha aprimoramento do controle de armas e munições, "reforçando seu rastreamento, por meio de rigorosa marcação, nos termos do estatuto do desarmamento".

MÍDIA

"O direito de acesso à informação e aos meios de comunicação é essencial numa sociedade democrática, orientada pelos direitos humanos e para a soberania. A liberdade de expressão não pode ser um privilégio de alguns setores, mas um direito de todos, dentro dos marcos legais previstos na Constituição, que até hoje não foram regulamentados, de modo a garantir princípios como a pluralidade e a diversidade. Paralelamente, é dever do Estado universalizar o acesso à internet e atuar junto às plataformas digitais no sentido de efetivar a neutralidade, garantir proteção de dados e coibir a propagação de mentiras e mensagens antidemocráticas ou de ódio."

Professor da ECA-USP e coordenador do grupo Jornalismo Direito e Liberdade, Vitor Blotta afirma que, como redigida, a proposta não se resume à regulação da internet mas também de outros setores da comunicação social, como telecomunicações e radiodifusão.

"Isso fica claro quando se fala em falta de regulamentação da constituição e em 'paralelamente' a questão da internet."

Elaborado em meio à condenação e prisão de Lula, o plano de Haddad era explícito.

Previa apresentação, nos seis primeiros meses de governo, uma proposta de novo marco regulatório da comunicação social eletrônica, "a fim de concretizar os princípios da Constituição Federal para democratizar largamente a comunicação social e impedir que beneficiários das concessões públicas e controladores das novas mídias restrinjam o pluralismo e a diversidade".

Nesta pré-campanha, Lula já falou sobre o tema, mas de forma confusa, associando suas críticas à imprensa a outras questões, como a concentração de grupos econômicos no setor de radiodifusão, a desinformação nas redes sociais e os critérios do governo para distribuição de verbas de publicidade oficial.

Durante os dois governos de Lula, houve várias tentativas de regular os meios de comunicação, mas a maioria não avançou. O petista chegou a propor a criação de um conselho para fiscalizar o exercício da profissão de jornalista, mas desistiu depois que a proposta foi rechaçada pelo Congresso.

JUSTIÇA

"O sistema de justiça, em todos os seus níveis, deve ser aperfeiçoado, com a participação de todos os poderes da República e da sociedade, para promoção da cidadania, observando a prevalência da soberania democrática, a partir de um amplo debate nacional."

As diretrizes para o programa de Lula propõem aperfeiçoamento do sistema de Justiça.

Quando condenado à prisão pelo então juiz Sergio Moro, Lula avalizou um plano de governo que previa uma reforma do Judiciário, com fixação de mandato para ministros dos tribunais superiores, além de mudanças na forma de escolha.

O plano de Haddad previa também redução de férias, fim do auxílio-moradia para magistrados, membros do Ministério Público e demais agentes públicos que possuam casa própria e residam no domicílio ou que usem imóvel funcional, bem como a regulamentação definitiva e segura da aplicação do teto ao funcionalismo público.

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