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Carta pela democracia segue 'manual' de ação contra escalada golpista

Documento já com mais de 250 mil assinaturas vai no ponto certo ao defender valor maior e buscar coalizão ampla

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São Paulo

A carta pela democracia que passou a circular no Brasil nesta semana segue à risca uma das principais lições de intelectuais que estudam o avanço do autoritarismo mundo afora: formar uma coalizão tão ampla quanto possível é a melhor maneira de barrar aventuras golpistas.

Foi exatamente isso que procuraram os autores da "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito", que será lida em encontro na Faculdade de Direito da USP no dia 11 de agosto.

Em busca de conquistar a adesão de diferentes setores da sociedade, eles excluíram palavras que pudessem soar divisivas ou partidárias e mantiveram no texto apenas o que lhes parecia o mínimo denominador comum.

Com isso, passaram de 250 mil signatários em menos de 48 horas e ainda estão colecionando novos apoios pelo site "Estado de Direito Sempre!".

Fachada do prédio da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, em São Paulo - Eduardo Knapp - 20.jan.22/Folhapress

De acordo com cientistas políticos, filósofos e historiadores que têm analisado a escalada de políticos autoritários e populistas em diferentes nações, um erro frequente das forças democráticas é o de permanecerem desunidas até que seja tarde demais.

O tema atraiu olhares acadêmicos quando o número de países democráticos começou a diminuir de forma inquietante após uma expansão que parecia invencível: eles saltaram de 35, em 1970, para quase 120 nos anos 2000.

De lá para cá, contudo, a onda refluiu, e a agenda populista se infiltrou até mesmo em lugares que quase todos imaginavam imunes a esse tipo de perigo.

O ponto de virada que ligou o alerta vermelho foi a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Um pouco antes e um pouco depois, porém, outros países se viram às voltas com o mesmo problema, embora nem sempre sob o mesmo nível de ameaça.

Reino Unido, Hungria, Polônia, Índia e Venezuela estão entre as nações mais mencionadas nas obras acadêmicas. E, é claro, também o Brasil sob a Presidência de Jair Bolsonaro (PL).

Tornou-se consenso entre esses autores a ideia de que, hoje em dia, o golpe de Estado dificilmente ocorre com tanques nas ruas e baionetas nas mãos.

Em vez disso, os políticos autoritários agem de forma insidiosa: chegam ao poder por meios legais, usam as prerrogativas do cargo para corroer os pilares de sustentação da democracia e, finalmente, alteram a Constituição em benefício próprio.

Fazem isso com jogadas bem conhecidas, como o enfraquecimento dos órgãos de controle (Polícia Federal, Ministério público Federal) e a disseminação de dúvidas quanto à legitimidade das eleições.

Segundo o cientista político Yascha Mounk, autor de "O Povo Contra a Democracia" (Companhia das Letras, 2018), apenas uma minoria de líderes populistas deixa o governo depois de perder eleições livres e justas ou de chegar ao final do mandato.

Ainda de acordo com ele, quase a metade dos políticos dessa estirpe conseguiu mudar a Constituição para ampliar os próprios poderes, muitos restringiram as liberdades civis e, na média, os países em que eles atuam se tornaram mais corruptos.

Em contrapartida, Mounk afirma que a experiência dos países que já passaram por isso deixa alguns ensinamentos.

O primeiro é que subestimar as ameaças golpistas tende a ser péssimo negócio. Quem quiser salvar a democracia precisa levar a sério a possibilidade de ela estar em risco.

O segundo é que, em geral, os políticos autoritários e populistas só alcançam o cargo máximo se seus adversários deixam de firmar um pacto contra ele.

Nessa mesma linha vão os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Zilblatt, autores de "Como as Democracias Morrem" (Zahar, 2018).

Eles sustentam que coalizões entre convergentes são importantes, mas não bastam para defender a democracia. Para funcionar, a aliança deve incluir pessoas com opiniões diferentes, até opostas em muitas questões.

Uma frente ampla formada não apenas por amigos, mas também por adversários. Isso significa fazer concessões em relações a temas importantes para cada um, tendo sempre em vista que paira acima uma ameaça maior.

Os autores não defendem o abandono de causas particulares a cada grupo; argumentam apenas que esses temas precisam ficar de lado por um tempo para que se encontrem bases morais comuns a todos.

Não se trata de receita de bolo, mas, diante de uma coalizão ampla, que some setores relevantes da esquerda à direita, políticos autoritários têm reduzida sua margem de manobra em caso de derrota eleitoral.

Como Bolsonaro tem repetido amiúde seus ataques infundados contra a urna eletrônica, a carta pela democracia vai no ponto certo ao advogar o respeito ao resultado das eleições –e acerta ao aparar arestas em busca de todos os apoios possíveis.

De quebra, deixa uma grande marca na testa dos omissos: se o manifesto se limita a proteger valores maiores como a democracia e o processo eleitoral, o que defendem aqueles que não o assinaram?

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