Saúde mental de eleitor tem cicatrizes com polarização, pandemia e economia

Especialistas veem fragilização maior especialmente entre mulheres, pessoas negras e de baixa renda

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mogi das Cruzes (SP)

Quatro anos e diversas crises separam as urnas de 2018 do pleito marcado para 2 de outubro. À polarização naquele período se seguiu uma pandemia e a intensificação da desigualdade no país, com reflexos diretos na saúde mental de brasileiros.

Para psicólogos e psiquiatras ouvidos pela Folha, mulheres, pessoas negras, com menor escolaridade e baixa renda, além de minorias, como LGBTQIA+ e indígenas, foram as mais afetadas.

A divulgação de pesquisas de intenção de voto, por exemplo, como mostrou reportagem da Folha, já tem gerado ansiedade em eleitores. Especialistas acreditam que, assim como em 2018, as queixas devem aumentar conforme se aproximar o dia da votação.

Naquela ocasião, quadros como ansiedade, angústia, paranoia e depressão foram diagnósticos comuns. Não há, porém, estudos mais amplos que mostrem como as eleições impactaram a saúde psíquica da população, dizem os profissionais da área.

dois imãs opostos um ilustrado com a bandeira do brasil e o outro com a bandeira do PT. entre eles, ícones com emoji triste, coronavirus e cifrão.
Saúde mental de eleitores tem cicatrizes com polarização, pandemia e cenário econômico - Silvis

Nos Estados Unidos, a APA (Associação Americana de Psicologia) publica anualmente desde 2007 o relatório "Estresse na América".

A pesquisa realizada em 2020, ano da disputa entre Joe Biden e o então presidente Donald Trump, registrou aumento de estresse em comparação ao pleito anterior, quando o republicano venceu a democrata Hillary Clinton.

Em 2016, 59% dos republicanos responderam que o período eleitoral era uma fonte de esgotamento, ante 55% dos democratas. Já em 2020, a taxa chegou a 76% entre os democratas, enquanto para os republicanos ficou em 67%.

Apesar da falta de estudos e estatísticas sobre os brasileiros, há uma percepção compartilhada entre profissionais de que a polarização política começou a aparecer como fator de estresse e ansiedade em 2018 ou, para alguns, já em 2016, com o quadro de protestos de rua e o impeachment da então presidente Dilma Rousseff.

Os discursos de campanha e os apoios manifestados a candidatos de campos opostos levaram a rupturas de relações pessoais, tanto no âmbito familiar quanto entre amigos e colegas de trabalho.

"Quando você tem essa diminuição da capacidade de pertencimento de ordem psicótica e sentimento de diminuição do sentimento social, você tem uma afetação da saúde mental", afirma o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP.

As reações também variam conforme o histórico de cada pessoa.

A psiquiatra Vanessa Flaborea Favaro, diretora dos ambulatórios do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, conta que atendeu um paciente que era psicótico e absorveu todo o clima de tensão eleitoral, deixando de sair de casa, com o receio de ser preso.

Em Porto Alegre, o psiquiatra Pedro Lima conta que naquele período atendeu uma pessoa em pânico dizendo que o PT poderia ganhar a eleição e que um navio havia chegado de Cuba para comprar o pleito.

Da mesma forma, também recebeu pessoas apavoradas com a possibilidade de vitória de Jair Bolsonaro.

Com o passar do tempo, as angústias eleitorais deram lugar a outras questões que se tornaram latentes na vida do brasileiro. O cenário de incerteza a partir da decretação da pandemia de Covid-19 em março de 2020, assim como a onda de mortes e o isolamento geraram o alerta sobre os danos à saúde mental.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), as taxas de depressão e ansiedade subiram 25% no mundo durante a pandemia, mas apenas 2% dos orçamentos nacionais de saúde e menos de 1% de toda a ajuda internacional foram dedicados à saúde mental.

Estudos realizados em 2020 no Brasil trouxeram diferentes resultados.

Uma pesquisa realizada pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) por meio de um questionário online, aplicado de maio a julho de 2020, sobre transtornos psiquiátricos no período foi respondido por quase 2.000 pessoas, a maioria mulheres (84%).

Do total de participantes, 82% apresentaram sintomas moderados a graves de ansiedade e 68% de depressão. Os mais impactados foram jovens, pessoas com baixa renda e escolaridade.

"Naquele primeiro momento, o impacto foi maior, porque a gente estava naquela situação de muito medo, de insegurança, sem saber o que ia acontecer com o futuro. Não se tinha nem perspectiva de vacina", diz a professora Adriane Ribeiro Rosa, coordenadora do estudo e pesquisadora na área de saúde mental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Na PUC-SP, a psicanalista Adriana Barbosa Pereira fez um projeto que coletou mais de mil relatos de sonhos ao longo do primeiro ano de pandemia, de diferentes idades, usados como referência para psicanalistas no livro "Sonhar: Figurar o Terror, Sustentar o Desejo", organizado por ela e o psicólogo Nelson Ernesto Coelho Júnior.

Entre os sonhos relacionados à crise sanitária, Adriane conta que apareceram relatos ligados a figuras políticas, como Bolsonaro.

Já outra pesquisa feita pela Faculdade de Medicina da USP, que avaliou participantes do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa Brasil) –funcionários de diferentes universidades acompanhados desde 2008–, indicou que a crise não alterou de forma significativa a ocorrência de transtornos mentais.

Foram 2.117 participantes da pesquisa aplicada em três períodos, entre maio e dezembro de 2020. De acordo com os resultados, a taxa de transtorno mental oscilou entre 24% e 21%. A de depressão caiu de 3,3% para 2,8%, e transtornos de ansiedade variaram entre 14% e 8%.

A comparação com o histórico dos pacientes é um diferencial do estudo, segundo o psiquiatra José Gallucci Neto, que integrou a pesquisa e é do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.

Por outro lado, ele chama atenção para o fato de que a saúde mental do brasileiro já era ruim antes da pandemia.

O perfil ocupacional da mostra, segundo ele, foi o grande limitador, mas que apesar disso foi possível identificar um subgrupo com pessoas com risco aumentado de transtorno mental, composto por mulheres, pessoas de raça não branca, com baixa escolaridade, e doenças mentais, o que mostra o impacto desigual da pandemia.

O psiquiatra também vê uma parcela da população mais fragilizada em termos de saúde mental neste momento, destacando os impactos causados pelo empobrecimento, instabilidade e polarização política e pela desconfiança alimentada nas redes sociais.

Um levantamento feito pelo Imds (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social) mostrou que 47,3 milhões de brasileiros, o equivalente a 22,3% da população, terminaram o ano na pobreza, o que significa viver com renda diária no valor de US$ 1,9, cerca de R$ 10, ou menos que isso.

A parcela mais afetada foi a população negra, que corresponde a 73% do total.

"O impacto econômico é muito grande e desencadeia uma série de quadros clínicos delicados", afirma o psicólogo e mestre em psicologia clínica Lucas Veiga, que atende pacientes negros no Rio de Janeiro por meio da prática da psicologia preta.

Veiga afirma que apenas a terapia não é capaz de reduzir a ansiedade de uma mãe que não sabe se será capaz de alimentar os filhos, defendendo que o sofrimento psíquico é um problema político.

"Temos visto mais quadros de ansiedade, desde moderadas a quadros mais críticos, como transtornos do pânico, aumento dos índices de depressão, porque gera uma sensação de impotência muito grande para as pessoas não poder arcar com as contas da casa", diz.

Em relação ao discurso político, ele observa um temor de que o processo eleitoral seja violento ou que ocorra um golpe caso o presidente Jair Bolsonaro não seja reeleito.

"A questão que me parece que fica é como a gente coloca as questões que precisam ser colocadas em um debate entre candidatos sem fazer uso do seu lugar para inflamar eleitores para um confronto entre eleitores, porque aí viveríamos um problema civil em uma escala que a gente não consegue nem prever."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.