Descrição de chapéu forças armadas

Sombra de politização das Forças Armadas marca centenário dos 18 do Forte

Marco do tenentismo ganhou ar heroico, mas insubordinação gera divergência em paralelos com golpismo de Bolsonaro

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Rio de Janeiro

A caminhada vista por muito tempo como heroica dos chamados 18 do Forte completa nesta quarta-feira (6) seu centenário sob a sombra de preocupação de nova politização das Forças Armadas alimentada pelo presidente Jair Bolsonaro.

O levante do Forte de Copacabana, liderado por tenentes do Exército, teve como principal bandeira o fim do domínio das elites paulistas e mineiras na República Velha e a defesa do liberalismo político.

Cem anos depois, com ameaças golpistas, a avaliação sobre o marco do movimento tenentista gera debate na academia em razão do envolvimento de militares na política por meio de insubordinações e quebras de hierarquia.

Militares de revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em julho de 1922 - Divulgação

"Ao enaltecer os tenentes como uma peça mestra para a revolução de 1930 [apoiada por alguns dos revoltosos de 1922], estamos enaltecendo a intervenção militar na política brasileira. Não creio que seja um bom legado. Não se construiu uma boa tradição a partir disso", afirma a cientista política Maria Celina D'Araújo.

A historiadora Isabel Aragão avalia ser um equívoco apontar o movimento dos 18 do Forte "como um marco intervencionista".

"Esse é um momento especial, no qual os militares revoltosos ainda estão abertos a quaisquer tendências políticas. Depois que o movimento termina, aí sim, se inicia um projeto de profissionalização e retirada dos militares da política, que os fazem pender para um conservadorismo como vemos hoje", afirma a historiadora.

O levante do Forte de Copacabana foi organizado por militares contrários à posse de Artur Bernardes, vitorioso na eleição presidencial em 1922. À época vigorava a chamada República Velha, ou Primeira República, marcada por fraudes eleitorais e o chamado "voto de cabresto".

Presidente Artur Bernardes
Presidente Artur Bernardes - Reprodução

O movimento ocorreu num contexto de mobilizações políticas e culturais intensas no país na década de 1920, estimuladas pelo crescimento de uma nova classe média urbana.

O estopim da revolta foi a prisão do marechal e ex-presidente Hermes da Fonseca (1910-1914). Ela antecipou o levante que vinha sendo gestado havia alguns meses.

A mobilização desorganizada fez com que poucas unidades militares participassem da sublevação. A principal foi o Forte de Copacabana. Na madrugada de 5 de julho de 1922, tiros de canhão foram disparados contra a cidade para anunciar o levante.

Cercado pelo Exército e sem qualquer chance de vitória, um grupo de militares que resistiam no forte decidiu sair no dia seguinte em caminhada até o Palácio do Catete a fim de depor o presidente Epitácio Pessoa e impedir a posse de Bernardes.

Apesar de conhecido como 18 do Forte, não há certeza sobre o número exato de militares que deixaram a unidade e os civis que os acompanharam para a missão considerada quase suicida. O grupo revoltoso entrou em confronto com milhares de militares na orla da zona sul do Rio de Janeiro, terminando todos mortos ou presos.

Os líderes do movimento se tornaram importantes personagens da história política do país, tendo alguns participado da revolução de 1930 que levou Getúlio Vargas ao poder, neste momento já com feições autoritárias.

Luís Carlos Prestes liderou revoltas pelo país nos anos seguintes, tendo comandado a coluna que levou seu sobrenome e o levante comunista, em 1935. Eduardo Gomes, por sua vez, combateu a Intentona Comunista e se candidatou por duas vezes à Presidência pela UDN.

O segundo presidente na ditadura militar, Costa e Silva, também participou do levante, ainda que de forma pontual. O primeiro, Castelo Branco, era tenente à época da revolta.

"É um dos eventos definidores da história do país. Começa pelo fato de que os generais de 1964 são os tenentes de 1922. Só nisso, mostra como essa geração de militares influenciou durante 80 anos a história do Brasil", afirma o jornalista Pedro Doria, autor do livro "Tenentes: a Guerra Civil Brasileira".

Historiadores e cientistas políticos são enfáticos ao distanciar os ideais tenentistas dos de Bolsonaro, ex-capitão do Exército com histórico insubordinado.

"São realidades muito diferentes. [Em 1922] Tinha um sistema corrompido em decadência, e a insatisfação de jovens militares que achavam ser papel deles corrigir esse sistema. Não dá para comparar com a entrada em cena de um oportunista", afirmou a historiadora Isabel Lustosa.

Alguns, contudo, veem paralelos entre a revolta de 1922 com o estímulo à participação política de militares feito pelo atual presidente.

"O que tem em comum de 1922 para hoje seria a ideia que se construiu, a partir do momento em que os rebeldes se tornam vitoriosos, de que os militares têm um papel superior na política. Isso é o que existe até hoje", afirmou D'Araújo.

Para ela, o fato de os militares à época lutarem contra uma oligarquia que dominava de forma fraudulenta a política no país não legitimava a insubordinação.

"O Brasil não seria capaz de mudar sem um golpe? Tenho certeza que sim. Tínhamos uma elite política capaz de fazer essa renovação. É uma ideia tosca da história como processo achar que a mudança só vem com intervenção militar", afirma a cientista política

Aragão, por sua vez, avalia que a atuação posterior de alguns dos líderes do movimento mostra que a revolta tem aspectos além da tutela militar sobre o poder civil.

"Como revoltosos percorreram interiores longínquos, onde sequer havia Estado. Tinham certa tendência em seus discursos a reivindicar para si a responsabilidade de representar o povo camponês, ainda miserável, analfabeto, que não tinham condições intelectuais, políticas, para um embate com forças tão poderosas", diz a historiadora.

A crítica, para ela, pode ser dirigida àqueles militares que apoiaram o governo na ocasião.

"A atuação dos legalistas, sim. Aqueles que estiveram ao lado do governo e participavam da política, sim. Receberam promoções, medalhas, aumentos de soldo, como agora. Queriam estar no poder, no controle político, ao lado das elites, do mesmo modo que parte do Exército se porta agora", disse.

Monumento em homenagem ao tenente Siqueira Campos, um dos '18 do Forte' na avenida Atlântica, representando o momento em que ele foi baleado pelo Exército. - Eduardo Anizelli / Folhapress

O historiador Luiz Werneck Vianna tem avaliação semelhante. Para ele, o tenentismo sequer teve forte influência em momentos seguintes da história, tendo sido "capturado por Vargas".

"Depois os conservadores tomaram conta do vértice da corporação militar e criaram um Exército conservador. Foi um alento muito breve da juventude militar, mas que foi devorada depois pela ordem tradicional burguesa brasileira."

Numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2016, Vianna comparou a atuação dos procuradores da Operação Lava Jato com a dos tenentes em 1922.

"Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o país. E esses 'tenentes de toga' não têm. São portadores apenas de uma reforma moral", disse, na ocasião.

À Folha ele afirma não ser uma boa base de comparação. "O resultado dessa Lava Jato foi frustrante desde o início. Eles não tinham nada na cabeça."

Especialistas avaliam que, no cenário atual, Bolsonaro não teria condições de promover levantes conduzidos pelo baixo oficialato após as eleições. Eles consideram não haver uma fratura no Exército, como existia há cem anos.

"Em 1922 e nos anos seguintes, tínhamos Forças Armadas divididas. Hoje temos uma instituição que é um grande mudo. Quem fala são os comandantes e os da reserva. Creio que o Bolsonaro não tem fôlego para dividir as Forças Armadas e colocar parte dela nas ruas. Muito menos fôlego para colocar toda ela. A instituição tem muito a perder se se dividir e se expuser de uma forma coesa", afirmou D'Araújo.

"Dá para ver que ele consegue manipular bem as mentes dos que têm os empregos ligados a ele. Debaixo dali não se sabe o que está se passando. Militares que aderiram na primeira hora e foram tratados de outra forma", disse Lustosa.

Vista aérea do Forte de Copacabana, principal palco da revolta de tenentes em 1922 que culminou no episódio conhecido como 'os 18 do Forte' - Eduardo Anizelli / Folhapress
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