Conflitos no campo avançam sob Bolsonaro e pressionam comunidades tradicionais

Disputas por território crescem diante do avanço de fronteiras agrícolas e do garimpo ilegal

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Manaus e Salvador

Em janeiro de 2020, Celino e Wanderson Fernandes, pai e filho, foram mortos por pistoleiros no Cedro, comunidade quilombola na cidade de Arari, no Maranhão. O clima de insegurança perdurou nos meses seguintes na comunidade, que viveu o luto de outras três mortes em circunstâncias parecidas: João de Deus Moreira e Antônio Gonçalo foram assassinados em 2021, e José Francisco Rodrigues, em 2022.

No ano passado, também foram mortos, na cidade de Penalva (MA), os quilombolas Maria José Rodrigues e José do Carmo Júnior, e, em São João do Soter (MA), Edvaldo Rocha, líder da comunidade Jacarezinho.

As oito mortes em um único estado em pouco mais de dois anos representam apenas uma fração da escalada de violência em torno de conflitos agrários no Brasil durante o governo Jair Bolsonaro (PL).

Populares em Atalaia do Norte (AM) aguardam a chegada dos corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips
Populares em Atalaia do Norte (AM) aguardam a chegada dos corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips - Pedro Ladeira - 15.jun.2022/Folhapress

Dados da Comissão Pastoral da Terra apontam que o número de conflitos no campo escalou: foram 4.214 nos últimos três anos, alta de 11,5% em relação aos três anos anteriores, com um total de 109 mortes.

Em 2021, foram 1.768 conflitos registrados, em especial nos estados de Minas Gerais, Pará, Bahia e Maranhão, e 35 pessoas assassinadas em meio a disputas por terras, 29 das quais na Amazônia.

A região se tornou o epicentro dos conflitos agrários no país diante do avanço das fronteiras agrícolas e do garimpo ilegal, que acossaram indígenas e moradores de comunidades tradicionais.

Bolsonaro se elegeu em 2018 com as promessas de não demarcar "nem um centímetro sequer" de terras indígenas e de afrouxar regras de licenciamento ambiental.

No governo, aplicou políticas públicas que estimularam a grilagem, como o Titula Brasil, que transfere poderes a municípios para regularização de terras, e ações como a pavimentação da BR-319, rodovia que liga Manaus a Porto Velho.

O discurso encontra guarida em parte dos eleitores dos estados amazônicos, que em sua maioria elegeram governadores alinhados ao presidente e que também flexibilizaram regras ambientais.

O tema vai além das divisões entre direita e esquerda. No Amazonas, parte do PT defende a mineração em terras indígenas, pauta incentivada por Bolsonaro e criticada por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Obras de infraestrutura em áreas sensíveis da floresta também geram controvérsia, caso da pavimentação da BR-319. Mesmo sem consultas aos povos indígenas da região nem a criação de unidades de conservação para amortecer estragos e conflitos, o governo federal comemorou a emissão da licença inicial, dada pelo Ibama, para revestir o trecho do meio da estrada.

Os documentos da autorização, concedida em julho, apontam um risco de intensificação da grilagem nos dois lados da estrada, em caso de pavimentação da via.

Na parte sul da BR-319, os conflitos ganham força a cada ano, fazendo com que moradores vivam sob medo permanente. Um deles é Francisco Amaral, 56, que há cinco anos não tem notícias do paradeiro da sua mulher, Marinalva Silva.

Em dezembro de 2017, ela, Flávio de Souza e Jairo Feitosa desapareceram após uma abordagem que teria sido feita por fazendeiros e grileiros da região. Eles lideravam uma associação que tentava regularizar o assentamento constituído numa área atribuída à União.

Desde então, as famílias convivem com ameaças, conta Francisco: "Todo ano, no verão, pessoas armadas expulsam os moradores e exploram a madeira. Elas costumam dizer que, se não saírem, vai ocorrer a mesma coisa que ocorreu com os outros três".

Da polícia, os familiares escutaram que eles devem estar mortos. Nenhum desfecho da investigação foi comunicado aos parentes. "É muito ruim, uma história que parece não ter fim. O emocional parece não ter a mesma aceitação que o racional tem", diz a professora Rosiane de Souza, 46, esposa de Flávio.

No ano anterior ao desaparecimento, Flávio atuou como brigadista do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). As disputas por terra na região da BR-319, em especial ao sul do Amazonas, agravaram-se após a eleição de Bolsonaro, constataram estudiosos, indicadores e moradores.

"Piorou muito com Bolsonaro. Sumiu mais gente. E as pessoas estão bem mais armadas, pensam que podem fazer tudo", afirma Amaral, ex-companheiro de Marinalva. Segundo ele, o assentamento se esvaziou depois dos sumiços e das ameaças. "Não ocorreu nada. Ficou no esquecimento. Nenhum dos três é estrangeiro, são simples brasileiros. Quando é internacional, descobrem rapidamente."

Ele se refere ao desfecho do caso dos assassinatos, no Vale do Javari, do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, que vivia no Brasil, crime com grande repercussão internacional.

Os corpos foram encontrados dez dias depois na margem do rio Itaquaí. Na sequência, o Ministério Público Federal denunciou os suspeitos do crime à Justiça Federal. Eles estão presos preventivamente.

Não foi um caso isolado. Conflitos provocados por invasões à terra indígena, feitas para alimentar um esquema de pesca e caça ilegal, passaram a ser cada vez mais frequentes, especialmente em razão do desmantelamento de órgãos como a Funai (Fundação Nacional do Índio).

Em 2021, houve 305 casos de invasão, exploração ilegal e danos a 226 terras indígenas no Brasil, um recorde, de acordo com levantamento divulgado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). A cifra representa aumento de 180% em relação aos números de 2018, último dado antes do início da gestão Bolsonaro.

O relatório do Cimi ainda cita 176 assassinatos de indígenas no ano passado. Em 2020, foram 182, o maior número já registrado desde 2014. Além da Amazônia, o Cerrado também se tornou um dos principais palcos de conflitos agrários no país, sobretudo em regiões das novas fronteiras agrícolas nos estados do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia, que formam a região conhecida como Matopiba.

O avanço de megafazendas que atuam sobretudo na produção de soja, milho e algodão encurralou as populações locais, incluindo quilombolas, geraiseiros e comunidades de fecho e fundo de pasto.

A supressão de áreas de cerrado teve o aval de governadores da região, parte dos quais de partidos de esquerda. Em alguns casos, houve autorização para retirada de vegetação até mesmo em áreas consideradas griladas pelo Incra.

É o caso do condomínio Fazenda Estrondo, em Formosa do Rio Preto, no oeste baiano. Responsável pela área, a Delfin Rio foi autorizada pelo governo Rui Costa (PT) a suprimir 24,7 mil hectares de vegetação nativa, uma área maior que a da cidade do Recife. A empresa afirma que está cumprindo condicionantes e que só vai desmatar 10% do total autorizado.

A retirada da vegetação é questionada por ambientalistas, sobretudo pelo uso de técnicas agressivas como o uso do correntão. Também houve conflitos. Em janeiro de 2019, o agricultor Jassone Lopes Leite foi baleado na perna por seguranças da empresa, que alegou intimidação de seus funcionários.

Neste ano, agricultores e comunidades tradicionais fecharam um acordo para a desativação das guaritas e permissão do acesso dos moradores em determinadas áreas da fazenda.

Mayron Borges, presidente do Fórum Carajás, que atua na articulação de movimentos sociais na região, diz que os quilombolas estão duplamente atingidos. De um lado, Bolsonaro travou a titulação e a regularização das comunidades. Do outro, o governo do Maranhão autorizou o desmatamento de novas áreas nas gestões do ex-governador Flávio Dino e do atual, Carlos Brandão, ambos do PSB.

Em cumprimento a uma decisão judicial, o governo do Maranhão celebrou um acordo e assinou uma portaria que garante o direito à consulta dos povos e comunidades tradicionais durante os processos de licenciamento ambiental.

O governo informou que a escalada de violência contra os povos e comunidades tradicionais não se restringe ao Maranhão e é resultado mudanças políticas a partir de 2018, com agravamento do quadro de conflitos a partir de 2020.

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