Mesário vira função de risco no Brasil com ataques às urnas e violência política

Ofensiva bolsonarista contra sistema eleitoral eleva apreensão de convocados e grupos pró-democracia

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São Paulo

A ofensiva do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra o sistema eleitoral e o ambiente de violência política que precede as eleições deste ano vêm espalhando medo entre mesários e preocupando organizações que se mobilizam para que o pleito de outubro transcorra normalmente.

Relatos de convocados para atuar nas seções eleitorais se somam a alertas de observadores, que cobram do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) ações preventivas e um plano de segurança que leve em conta o clima acirrado da corrida presidencial, hoje liderada por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Foto postada nas redes sociais em 2018 mostra arma sobre urna de votação; apoiadores de Bolsonaro naquela eleição foram votar armados - Reprodução/Twitter

"Estou inclinado a não trabalhar como mesário, pois nada me tira da cabeça que bolsonaristas invadirão as seções eleitorais e abrirão fogo contra os mesários", escreveu o antropólogo Verlan Valle Neto, 43, em carta publicada no Painel do Leitor, da Folha, no mês passado.

A origem das apreensões está na atitude golpista de Bolsonaro, que insufla apoiadores a questionarem a lisura das urnas eletrônicas e sugere desrespeitar o resultado caso perca. Bolsonaristas disseminam conteúdos com falsas alegações de fraude nos equipamentos e na apuração.

O receio de cidadãos que estarão na linha de frente da eleição é o de que a fúria se volte contra eles, com eventuais ameaças, agressões e acusações de manipulação política. Os próprios equipamentos poderiam se tornar alvos de depredação, causando tumultos que desestabilizem o processo.

Em 2018, simpatizantes de Bolsonaro já praticaram intimidações, levantando suspeitas sobre o sistema, e foram votar armados. Vídeos divulgados por eleitores mostraram que alguns chegaram a apertar os botões da urna com o revólver —filmar ou fotografar dentro da cabine é crime eleitoral.

Bolsonaro chegou a propor, há alguns dias, a ideia de filmar eleitores durante o voto em 600 urnas espalhadas pelo Brasil para uma suposta verificação sobre a lisura das máquinas. A sugestão foi criticada pelo alto risco de violação do sigilo do voto, que é garantido pela Constituição.

Valle Neto, o mesário convocado para o pleito deste ano, diz que torce para estar errado, mas prevê casos de violência em locais de votação, ainda que isolados. "Quando falei em bolsonaristas abrindo fogo, coloquei de uma forma um tanto quanto exacerbada uma possibilidade que considero real", afirma.

Ele, que mora em Juiz de Fora (MG) e deu expediente na eleição de 2020, conta ter ouvido conselhos de amigos e decidiu repetir a função. "Fui convencido de que seria importante não deixar a apreensão tomar o controle, o que não significa que ela não esteja presente."

O antropólogo diz que não enfrentou percalços dois anos atrás, mas se deparou com problemas que, no cenário belicoso de agora, podem levar a confusões maiores. São casos, de acordo com ele, de eleitores que insistem em votar sem documento de identificação ou não sabem usar a urna.

"Não vislumbro eleitores de quaisquer outros candidatos, tanto à direita quanto à esquerda, como uma possível ameaça ao trabalho dos mesários. Só vejo isso no caso dos extremistas de direita, cujo vínculo com Bolsonaro, todos sabemos, é profundo", afirma.

O temor de "fanatismos políticos" também é citado pelo analista de marketing Erick Lima, 28, que hesita sobre a chance de ser mesário novamente. O morador de Manaus, que exerceu a função há dois anos, se diz tenso com a possibilidade de incidentes não só na seção eleitoral, mas também no entorno.

"Querendo ou não, já aconteceu um caso de assassinato político, e é isso o que vem me assustando", afirma ele, referindo-se ao assassinato do dirigente petista Marcelo de Arruda pelo policial penal bolsonarista Jorge José Guaranho, no mês passado, em Foz do Iguaçu (PR).

Mesmo assombrado, Lima diz que atenderá ao chamado da Justiça Eleitoral. Segundo o TSE, cerca de 2 milhões de mesários, entre voluntários e convocados, participarão do pleito em todo o país.

A vulnerabilidade desse grupo entrou no radar de órgãos da sociedade civil que trabalham pela realização das eleições e pelo respeito aos resultados, inclusive em parceria com o TSE. O clamor chegou à chefia da corte, então ocupada pelo ministro Edson Fachin, agora substituído por Alexandre de Moraes.

A "grande preocupação com a integridade física dos servidores e mesários" foi mencionada em um documento levado a Fachin no último dia 8 pela Coalizão em Defesa do Sistema Eleitoral, que reúne mais de 200 entidades. A frente pediu ao tribunal "efetivo planejamento para a segurança".

De acordo com a advogada Tânia Maria de Oliveira, coordenadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, que integra a coalizão, as discussões abrangem "a proteção aos trabalhadores em geral nas eleições, inclusive os membros das entidades cadastradas como fiscalizadoras".

No documento entregue a Fachin, o grupo pediu que a corte suspenda portes de armas (exceto de agentes de segurança em serviço) e feche clubes de tiro nos dias anteriores e seguintes às eleições.

O texto diz que os "discursos de ódio proferidos pelo presidente da República e seus seguidores" e a "flexibilização sem precedentes na concessão de registros de armamentos" levam a "um contexto altamente preocupante" para candidatos, eleitores e mesários.

"O risco de lobos solitários praticarem ataques é muito grande", diz Pedro Kelson, coordenador de articulação política do Pacto pela Democracia, coalizão com mais de 200 organizações.

"A resposta do TSE é que a atribuição é dos órgãos de segurança pública estaduais, mais precisamente a Polícia Militar. O problema é que os estados não têm padronização nem transparência nos protocolos para a ocasião. E existe uma questão adicional, que é a politização radicalizada de parte dos agentes."

Segundo Kelson, as entidades pediram reuniões com fóruns de governadores e de secretários estaduais de segurança pública para abordar o assunto. Há queixas nos bastidores sobre demora da Justiça Eleitoral em fixar uma estratégia para a área. Materiais de treinamento dos mesários que já foram divulgados priorizam questões técnicas e ignoram o tema. Procurado, o TSE não se pronunciou.

No estado de São Paulo, onde mais de 400 mil mesários devem ser mobilizados, a situação é discutida com órgãos de inteligência das Polícias Civil, Militar e Federal, afirma em nota o TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral). As forças "atuarão de acordo com o cenário apresentado durante a votação".

O TRE-SP informa que está "atento aos acontecimentos" e que, assim como em outras vezes, a Polícia Militar "atuará para garantir a segurança de todos os envolvidos no processo eleitoral nos locais de votação". Reclamações de mesários amedrontados não foram registradas, segundo a corte.

O tribunal não responde se o risco geral está maior neste ano. Afirma que "cada eleição tem as suas características e os seus desafios" e que acredita que esta "transcorrerá dentro da normalidade". Diz ainda que as orientações sobre segurança aos mesários são as mesmas, mas não entra em detalhes.

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