Sofro discriminação de gênero todo dia, diz vice-diretora que leu carta pela democracia

Ana Elisa Bechara foi uma das articuladoras do ato realizado no dia 11 de agosto

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São Paulo

Ana Elisa Bechara acumulou funções e emoções nos últimos dias. Vice-diretora da Faculdade de Direito da USP, ela foi uma das articuladoras do ato pela democracia realizado no dia 11 de agosto e 1 das 4 pessoas que leram a "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito" –3 das quais eram mulheres.

"Tivemos muitas mulheres nesse evento por uma questão de representatividade. Para que todas as mulheres olhem e falem: ‘Olha só! Então a gente pode também’", afirma.

Mulher morena com blusa rosa atrás de uma mesa
Ana Elisa Bechara, vice-diretora da Faculdade de Direito da USP - Jardiel Carvalho/Folhapress

Ela sabe bem a importância disso, pois demorou a se dar conta de que conviveu com a violência de gênero ao longo de toda a sua vida acadêmica. E mesmo hoje, quando chegou ao topo da carreira como professora titular, o quadro não melhorou.

"Porque aí você tem certeza de que está ocupando um espaço que não era para você. As pessoas fazem questão de te mostrar isso", afirma Bechara, que diz sofrer discriminação todo dia, inclusive sendo a vice-diretora.

Em entrevista à Folha na sexta-feira (12), Bechara fez um balanço do evento da véspera, falou sobre a necessidade de manter a mobilização e disse que sentiu uma sensação de esperança. "O ato nos mostra que é possível despolarizar, que o Brasil tem uma via de diálogo possível."

Qual sua avaliação sobre o ato de 11 de agosto? Foi um sonho. Antes até brincamos dizendo que, se ninguém tomasse um tiro, faríamos um jantar para avaliar o evento. Até agora não conseguimos entender como deu tudo tão certo. O clima foi muito mágico; não teve nenhum acidente; até o tempo ajudou. Tínhamos comprado quase 2.000 capas de chuva e feito plano A, B e C, mas o sol saiu na hora certa.

A sra. mencionou brincadeira sobre tiro. Era exagero ou havia de fato essa preocupação? Não era exagero. Vivemos em uma sociedade muito polarizada. Se uma pessoa que faz a festa de aniversário toma um tiro por conta da sua opinião política, o que poderia acontecer no centro de São Paulo, em uma universidade pública, aberta? Quando o evento ficou grande, percebemos que não daria para deixar a faculdade aberta. O que é muito triste, porque a faculdade sempre teve as portas abertas.

Qual é o próximo passo? Vocês vão manter a mobilização? Eu acho que sim. Essa é uma responsabilidade social da Faculdade de Direito, uma responsabilidade de todos nós. Sem querer, descobrimos que a universidade podia funcionar como uma ponte para congregar setores diferentes em torno de uma mesma preocupação legítima.

Isso tem uma potência muito grande. Não dá para deixar passar. Temos que manter essa vigília cívica. Não no sentido de estar contra este ou contra aquele, mas de mostrar que a sociedade tem a sua força. E talvez isso tenha sido o mais bonito: essa sensação de esperança. O ato nos mostra que é possível despolarizar, que o Brasil tem uma via de diálogo possível.

A sra. vê risco de golpe? O momento é muito diferente do que se viveu nos anos 1960. A ideia de golpe é muito mais difícil hoje, por conta da própria estruturação da sociedade, das instituições. Mas atos como esse do 11 de agosto são muito importantes na função preventiva. Se alguém tinha alguma ideia de fazer isso [tentar um golpe], agora vai pensar duas vezes.

Qual foi a sensação de ler a carta no palco? Foi uma mistura de sensações, porque tem muita coisa envolvida. Como franciscana [formada na São Francisco, apelido da Faculdade de Direito da USP], tem todo o vínculo com a história do professor Goffredo [da Silva Telles Jr., que leu a "Carta aos Brasileiros" em 1977], com a história da faculdade. Isso é muito honroso.

Como cidadã brasileira, foi um momento único. Durante tanto tempo eu quis falar como brasileira, não como professora, e aquele foi meu momento de fala, mas ao mesmo tempo não era só eu –eu estava ali sendo a voz de muita gente. Isso foi muito mágico.

E tem a questão de gênero, que foi muito marcante. Na nossa sociedade, lamentavelmente, existe uma desigualdade de gênero enorme e, mais do que isso, existe um discurso de violência de gênero.

Na própria Faculdade de Direito, o número de alunas e alunos é igual, mas as mulheres são só 16% do corpo docente. Entre os professores titulares, nós somos 4 mulheres entre 40. É muito desigual.

Então foi uma mistura de sentimentos porque estar lá, sendo mulher e professora da casa, é algo muito novo. Eu recebi muitas mensagens de alunas e docentes de todas as unidades da USP falando como foi emblemático ter mulheres lendo a carta.

Questões de gênero e raça não estavam no horizonte da carta de 1977. Como foi incluir essas temáticas nesse ato? Começou com a própria carta. A original, de 1977, é "Carta aos Brasileiros". A de agora é "às brasileiras e aos brasileiros". Esse título já induz a reflexão sobre desigualdade de gênero.

Quando definimos que uma mulher faria a leitura, houve uma dificuldade de chegar a um nome no primeiro momento. Olha que loucura: ter dificuldade de encontrar uma mulher emblemática para a sociedade, como se não houvesse nenhuma. Aí percebemos como isso é violento. É horrível. Como não conseguimos pensar em uma mulher? É claro que elas existem, só que não são reconhecidas.

Então pensamos em ter não uma, mas algumas mulheres muito diferentes entre si, inclusive no sentido étnico-racial. Além disso, de gerações diferentes, porque teríamos a presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, que é uma mulher negra, que entrou na universidade dentro da política de cotas.

Tivemos muitas mulheres nesse evento por uma questão de representatividade. Para que todas as mulheres olhem e falem: "Olha só! Então a gente pode também".

A sua atuação acadêmica hoje é bastante ligada às questões de gênero. Como a sra. avalia a entrada dessa temática no universo jurídico, ainda dominado por homens brancos? Hoje eu trabalho com questões de gênero, mas não porque eu quis, não por ser minha agenda de pesquisa. Eu trabalho com dogmática penal, não tem nada a ver com isso.

Em 2013, alguns alunos e alunas quiseram fazer um documentário sobre a vida acadêmica dos professores. Vieram me entrevistar e, conforme eu ia respondendo, eles iam se emocionando. E eu digo se emocionando no sentido negativo. Eles falaram: "Mas a senhora passou por isso?". Uma aluna começou a chorar.

E eu me dei conta de tudo que eu tinha passado e que até então, para mim, era normal, era naturalizado.

Pode dar um exemplo? Quando fui aluna da faculdade, a gente levantava a mão na aula dizendo que tinha uma dúvida e o professor respondia: "Isso é normal, você é mulher. Pensa mais um pouco que a dúvida passa". Isso acontecia em sala de aula. Era normal, não é que a gente se sentisse constrangida, porque essa era a nossa realidade.

Quando eu estava no doutorado, eu era convidada para participar de reuniões para servir o café. E não é que eu me sentisse ofendida, porque o mundo era assim. A gente era educada, inclusive dentro da universidade, para agir dessa forma. Então eu não via a violência.

Eu vi a violência quando os alunos me entrevistaram e eu olhei para os olhinhos deles e vi que estavam horrorizados. No meio da entrevista, eu parei e comecei a chorar. Claro que a opressão é sentida, mas ela não é nomeada. Então você acha que está sendo oprimida por uma questão sua, um problema seu. Você não consegue entender que é um problema maior.

Mais ou menos nessa época, algumas professoras da casa se uniram para criar uma disciplina transversal para tratar de direito e equidade de gênero. Foi incrível, porque para a gente também é um aprendizado. Eu me lembro de vários professores que passaram a se dar conta de que as bibliografias de seus cursos só tinham homens.

Por conta de tudo isso, nós provocamos a modificação do Regimento Interno da Faculdade de Direito, incluindo normas que garantam equidade de gênero. Por exemplo, a maternidade não era levada em consideração nos relatórios de produção acadêmica. As mulheres que tinham filhos eram penalizadas, com redução de salário, mudança de regime.

A sra. sofreu discriminação mais recentemente? Muito. Todo dia. Problemas sexuais o tempo todo.

Mesmo como professora titular? Aí aumenta. Porque aí você tem certeza de que está ocupando um espaço que não era para você. As pessoas fazem questão de te mostrar isso. Mesmo fora do Brasil.

Por exemplo, vou dar uma conferência e alguém, na frente de mil pessoas, fala no microfone: "Nossa, você é inteligente! Achei que só fosse bonita". Muita piada machista. Ou alguém vem aqui e diz que quer falar com um homem, não comigo. Isso mesmo como vice-diretora.

Sou muito otimista. Eu estou muito feliz de ver mudar rápido.

A São Francisco já teve diretora, certo? Uma vez. A professora Ivette Senise Ferreira [eleita em 1998].

A sra. pretende ser diretora? Eu não pretendia nem ser convidada para o cargo que ocupo hoje. Foi um movimento que aconteceu, e é por isso que eu falo que a gente é jogada para essa discussão de gênero. Eu não queria ser uma pesquisadora de gênero. Eu não queria ser representante da bandeira de gênero. Mas tenho uma responsabilidade.

Se eu sou 1 das 4 mulheres que são professoras titulares e duas vão se aposentar no ano que vem, então tenho uma bandeira para carregar. É sim ou sim. Eu não posso falar "Não, não quero, eu vou me dedicar ao que sempre me dediquei". Não posso, porque os alunos pedem. Para uma turma do segundo ano, eu sou a única professora mulher.

De vez em quando uma aluna me abraça e fala: "Que bom ter uma professora mulher. É tão importante ter você, porque eu me sinto mal, porque esse mundo não parece ser meu".

Você me pergunta se eu quero ser diretora. Olha, eu adoro gestão acadêmica, adoro a universidade. Não tenho vaidade acadêmica. Mas o [diretor] Celso [Campilongo] me convidou para trabalhar com ele e tem me ensinado muito. Ele é um professor extraordinário.

E acho que é importante que a Faculdade de Direito tenha proximamente uma diretora mulher. Não por mim, mas para o direito isso é importante. Isso vai modificar muita coisa. Porque hoje, na linha de frente, sempre tem um homem. E a mulher fica aquela que está atrás, aquela que ajuda, aquela que não exerce protagonismo.

Raio-X

Ana Elisa Bechara, 46
​Vice-diretora da Faculdade de Direito da USP (com mandato de 2022 a 2026), é professora titular de direito penal e uma das responsáveis pela recente disciplina sobre direito e equidade de gênero. Formou-se na USP em 1998 e concluiu o doutorado na mesma faculdade em 2004.

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