Indústria digital bolsonarista avança massificada e sem fiscalização

Sites que se apresentam como noticiosos e imparciais disseminam desinformação e propaganda política disfarçada

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São Paulo

Sites bolsonaristas, cujos links são compartilhados em massa em grupos de WhatsApp e Telegram, receberam 48,2 milhões de visitas em julho, alcance maior do que o de sites de jornalismo profissional e de domínios considerados de esquerda, segundo a empresa de medição de audiência SimilarWeb.

Grande parte desses sites se apresenta como veículo jornalístico imparcial, mas publica desinformação e propaganda eleitoral. "Muitos são propaganda disfarçada de jornalismo. As pessoas não percebem isso, o que aumenta o grau de persuasão e manipulação", afirma Marie Santini, diretora do Netlab, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Como a legislação é vaga, esses sites não precisam cumprir exigências que veículos oriundos de concessão pública cumprem, como espaço proporcional aos candidatos. "Não há transparência, o que cria desequilíbrio", acrescenta Santini.

Logotipos dos aplicativos de mensagem WhatsApp (ao fundo), Telegram, à esq., e Signal
Logotipos dos aplicativos de mensagem WhatsApp (ao fundo), Telegram, à esq., e Signal - Dado Ruvic/Reuters

O NetLab, que monitora 556 grupos políticos no WhatsApp desde 2018 e 588 no Telegram desde 2020, identificou os sites mais compartilhados em comunidades bolsonaristas e de esquerda. Também incluiu na análise domínios que surgiram nos últimos meses e são muito disseminados nesses aplicativos.

A Folha, em parceria com o NetLab e o Tow Center, da Universidade Columbia (EUA), está investigando o conteúdo e a monetização de sites políticos durante o período eleitoral.

Em julho, o ecossistema bolsonarista teve mais do que o dobro de acessos de sites identificados como de esquerda (23,4 milhões de visitas, no total), ainda de acordo com a Similarweb.

Na comparação com páginas de veículos de imprensa, os domínios conservadores analisados tiveram, juntos, audiência superior à dos sites do jornal O Estado de S. Paulo (21,85 milhões) e Poder 360 (7,24 milhões), por exemplo, mas inferior aos números de Folha (52,83 milhões) e O Globo (77,14 milhões).

Muitos desses sites são promovidos nas redes sociais pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), seus filhos e aliados, o que aumenta o tráfego e, consequentemente, a monetização por meio de anúncios digitais via Google e outras empresas.

A maioria dos domínios não tem expediente nem identifica seus donos. O Cidade Revista, por exemplo, apresenta-se como "site de notícias e entretenimento no qual o leitor vai encontrar credibilidade, imparcialidade e informação".

Quem registrou o domínio foi Heckel Pedreira, candidato a deputado federal na Bahia pelo PTB. No site, além de conteúdo favorável a Bolsonaro, há vários textos sobre o empresário, uma "forte liderança de Camaçari", "com ideais de direita que defendem Deus, pátria, família e liberdade".

O Cidade Revista também republica materiais do site oficial de campanha do candidato como se fossem notícias. Em nenhum lugar o site informa que o dono do veículo é o empresário.

Procurado, Heckel afirmou em nota que, "segundo precedentes do TSE [Tribunal Superior Eleitoral], não há ilícito na manifestação de opinião por veículos de imprensa, dentre os quais o portal de notícias Cidade Revista". "A legislação também não garante espaço idêntico na mídia a todos os candidatos."

Na TV e no rádio, segundo a lei eleitoral, as emissoras não podem "dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação".

Essa regra não vale para a internet, pois não envolve concessão pública. Assim, sites estão sujeitos a responsabilização pela divulgação de material "sabidamente inverídico" ou afirmações difamatórias, com possibilidade de direito de resposta e remoção de conteúdo pela Justiça Eleitoral, segundo Francisco Brito Cruz, diretor-executivo do Internet Lab.

No entanto, segundo Alexandre Basílio, professor de Direito Eleitoral e Digital em 25 escolas judiciárias eleitorais, essa interpretação está mudando.

"Se é uma empresa que tem em sua razão social comunicação social e jornalismo, ela não pode falar apenas bem de um candidato, e mal de outro, quebrando isonomia no pleito. E não pode, de forma alguma divulgar propaganda eleitoral, pegar trechos de propaganda ou releases da internet e veicular em seus portais", diz.

"Se os advogados do candidato prejudicado conseguirem provar que o site faz isso de maneira sistemática, pode pedir que sejam removidas as publicações."

Propaganda eleitoral online só pode ser veiculada nos sites oficiais do candidato e de coligações e naqueles previamente informados ao TSE.

Outra possibilidade são impulsionamentos de posts ou anúncios contratados diretamente de plataformas como Facebook e YouTube —pagar sites para divulgação de propaganda eleitoral ou fatos inverídicos, entretanto, é crime eleitoral.

O Folha da Política é outro site a publicar textos com desinformação e conteúdos opinativos como se fossem notícias: "Moraes assume presidência do TSE exaltando a urna eletrônica que país nenhum quer por ser altamente fraudável" (na verdade, não há evidências de que o sistema seja fraudável) e "Bolsonaro, o melhor do mundo, é ovacionado aos gritos de 'MITO' pela população de Belo Horizonte" são exemplos.

A reportagem tentou contatar o responsável pela Folha da Política por meio do formulário presente no site e pelos números de WhatsApp e Telegram informados, mas não obteve resposta.

Na mesma toada, o site Newsatual publicou recentemente texto segundo o qual, "como de costume, o ex-presidiário Lula atacou a fé de milhões de cristãos e conservadores" e incitou "o ódio da população contra a igreja".

Texto semelhante circulou no site NovaIguaçu24h, com o título "COMÍCIO DE LULA É FRACASSO DE PÚBLICO EM SP E TEM NOVO ATAQUE AOS CRISTÃOS", reproduzido em mensagens no WhatsApp.

As declarações ecoam a narrativa de bolsonaristas, como o deputado federal Marco Feliciano (PL-SP), que tem espalhado desinformação ao afirmar que o candidato petista fechará igrejas se for eleito.

O NovaIguacu24h também veicula fake news sobre o sistema eleitoral. Um dos textos publicados no site afirma, por exemplo, que o Brasil conta com urnas eletrônicas não auditáveis, o que é falso. A Folha tentou entrar em contato com o Newsatual e o NovaIguacu24h por email, mas não recebeu resposta.

Campeão de audiência dentro do ecossistema bolsonarista, com 15 milhões de visitas em julho, o Terra Brasil Notícias circula conteúdos como "Era cachaça? Lula vê Bolsonaro em posse de Moraes no TSE e bebe líquido irreconhecível".

O site, que já foi prestigiado por Bolsonaro em um vídeo, teve inúmeros conteúdos classificados de "falsos" por agências de checagem.

Procurado, o responsável pelo Terra Brasil Notícias, o advogado Agacy Melo Júnior, disse que falaria com a Folha apenas após as eleições.

O Jornal da Cidade Online é outro gigante, com 9,48 milhões de visitas em julho. Muitos de seus conteúdos têm teor opinativo, a favor do governo e contra a oposição, embora se apresentem como noticiosos.

Um texto que em tese tem caráter de notícia, por exemplo, começa com a frase: "A derrota do ex-presidiário Lula pode significar a volta do (des)condenado para trás das grades? É por isso que Lula e seus asseclas estão tão desesperados?".

O texto com o título "Após 4 anos, Bolsonaro reescreve a própria história" afirma: "Quem não gostaria de poder voltar ao passado e reescrever algo de sua própria história? Infelizmente, na vida, nem sempre temos a oportunidade de voltar atrás e fazer tudo de novo, de um jeito melhor. Mas, para "O Mito", isso é possível sim."

E termina dizendo: "Se sem dinheiro, sem TV, e sem fazer campanha de rua em 2018 ele foi eleito, imaginem tendo tudo isso em 2022." O texto, que acompanha uma entrevista, não se identifica como opinativo ou editorial.

Agências de checagem também já rotularam de "falso" diversos textos do site. Procurado, José Tolentino, responsável pelo Jornal da Cidade, respondeu que o site exercita a liberdade de opinião e de imprensa assegurada na Constituição". "Isso incomoda a Folha?", questionou.

"Nossa linha editorial e ideológica é liberal conservadora. Não há nada de errado nisso. A Folha faz o mesmo, opondo-se diuturnamente ao governo e defendendo pautas de esquerda. Nada há na lei que estabeleça a necessidade de colocar o 'selo opinião' em nossas matérias... Vamos seguir defendendo uma ideologia e o governo legitimamente eleito por mais de 57 milhões de brasileiros", afirma Tolentino na mensagem, que termina com uma ameaça velada.

"Sugerimos ainda, cuidado com as pautas que tentam nos calar, pois, no Brasil, embora possa não parecer, ainda existem excelentes juízes."

Na mesma pegada do Cidade Revista, o site Brado Jornal divulga diversos materiais de campanha que estão no site oficial do deputado federal João Roma, candidato a governador da Bahia pelo PL e apoiado por Bolsonaro.

Os textos foram publicados como se fossem artigos jornalísticos, com títulos como "O sertão da Bahia vai prosperar sob o meu governo, diz Roma" e "Roma planeja uma Bahia eficiente e tecnológica em seu governo", o que na verdade são reproduções literais da propaganda do candidato.

Em nenhum lugar o Brado Jornal menciona que as publicações são textos elaborados pela assessoria de imprensa do candidato —o site diz buscar um "jornalismo imparcial, independente e sem censura". A Folha tentou contatar o Brado Jornal por telefone e pelo formulário de contato no site, mas não obteve retorno.

Para Marie Santini, diretora do Netlab, da UFRJ, os dados mostram que o ecossistema de sites bolsonaristas é muito maior do que se imagina. "Existem os sites mais conhecidos, com muita audiência, mas eles são só a ponta do iceberg. Há inúmeros sites menores surgindo a todo momento."

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