Mecanismos antitirania só funcionam com políticos que aceitam as regras, diz pesquisadora húngara

Renáta Uitz enxerga semelhanças no estilo de liderança do primeiro-ministro Viktor Orbán e do presidente Jair Bolsonaro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Constituições são feitas para aguentar investidas autoritárias, mas não há mecanismo que contenha um líder disposto a quebrar as suas regras. A análise é de Renáta Uitz, pesquisadora de direito constitucional que, nos últimos dez anos, debruçou-se sobre o retrocesso democrático que seu país, a Hungria, sofre.

Desde 2018, o mandato de Jair Bolsonaro (PL) é comparado à gestão do primeiro-ministro ultraconservador Viktor Orbán. Na semana passada, as semelhanças entre os dois líderes voltaram a chamar a atenção quando o presidente ventilou a possibilidade de aumentar o número de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) em um eventual segundo mandato.

-
A pesquisadora húngara Renáta Uitz - Zoltán Adrián/Divulgação

Orbán lançou mão da estratégia em sua Corte Constitucional. Além disso, mudou a idade de aposentadoria dos juízes —medida que integrou a Constituição em vigor desde 2012, seu terceiro ano no poder. Desde então, diferentes instituições do país vivem ataques.

Um deles foi contra a universidade onde Uitz é professora de direito. A CEU (Universidade Centro-Europeia) precisou mudar sua sede de Budapeste para Viena, na Áustria, após o governo Orbán exigir que universidades estrangeiras mantivessem atividades também em seus países de origem.

"A autodefesa constitucional só funciona se a elite política estiver disposta a aderir às regras do jogo. No momento, estamos enfrentando líderes que querem mudar essas regras para permanecer no cargo contra todas as probabilidades", afirma a pesquisadora, que também é codiretora do Instituto da Democracia da CEU.

Na semana passada, Bolsonaro disse que vai analisar o aumento do número de membros no Supremo Tribunal Federal brasileiro após as eleições, em um eventual segundo mandato. Como isso aconteceu em seu país? Na Hungria, além do Supremo Tribunal, há um Tribunal Constitucional. E para aparelhá-lo, mudaram as regras de eleição dos membros e do presidente do tribunal. Antes, o presidente era eleito pelos seus pares; agora, é escolhido pelo Parlamento. Além disso, em um momento crítico, mudaram a idade de aposentadoria dos juízes para garantir que os nomeados leais ao primeiro-ministro pudessem servir por mais tempo.

Essa não é, obviamente, a única maneira de aparelhar um tribunal. Mas é um caminho difícil de contestar, especialmente diante de fóruns internacionais. É realmente difícil para a sociedade civil e a oposição argumentar que, embora sejam mudanças cosméticas, na prática, o tribunal está aparelhado. Contanto que um líder como Orbán possa contar com a reeleição, ele tem todo o tempo em sua mão. Ele pode simplesmente eliminar alguns dos juízes de quem não gosta, não precisa demiti-lo por meio de processos disciplinares, não precisa ameaçá-lo.

A senhora acha que a democracia morreu na Hungria? Se você me perguntar, vou dizer que a democracia morreu quando se tornou impossível que a oposição ganhe uma eleição. Se você perguntar ao primeiro-ministro Orbán, ele dirá que a democracia está bem. Há eleições regulares e há um partido, o dele, que previsivelmente sempre consegue a maioria no Parlamento. A resposta à sua pergunta depende na sua crença na democracia constitucional —e não apenas em um sistema da maioria.

Qual foi o ponto de não retorno nos últimos anos? O principal ponto de virada foi antes das eleições de 2014, quando uma reforma eleitoral tornou significativamente mais difícil para a oposição concorrer às eleições. Foi uma estratégia para consolidar o poder e garantir as futuras vitórias eleitorais de Orbán e seu partido.

Quanto mais o tempo passa, menos a sociedade civil confia nos meios tradicionais para defender os direitos das minorias que foram demonizadas por esses regimes

Renáta Uitz

professora da Universidade Centro-Europeia

A senhora vê similaridades entre a situação húngara e a situação brasileira? Há semelhanças no estilo de liderança dos dois. Há uma boa razão pela qual Orbán foi convidado para a posse do presidente Bolsonaro. Mas são sistemas políticos diferentes.

O Brasil é presidencialista com um Congresso que poderia funcionar como um contrapeso ao presidente —embora, com as recentes eleições, a composição do Legislativo tenha mudando drasticamente. A Hungria é um sistema parlamentar. Se houver maioria de dois terços no Parlamento, como Orbán conseguiu de novo, governa.

Portanto, os sistemas constitucionais são diferentes, mas há semelhanças nos estilos políticos. E há indicações muito claras de que Orbán e Bolsonaro se consideram importantes aliados políticos no cenário político global.

Em 2018, partidos e políticos viviam uma grande crise no Brasil, e o país passava por problemas econômicos. Como era o cenário quando Orbán assumiu? O cenário era surpreendentemente semelhante. A eleição de Orbán foi precedida por dois mandatos do governo socialista. O segundo foi especialmente caótico. Havia uma bagunça econômica, e uma vida confortável parecia cada vez mais distante da população.

Certamente não foi tão teatral quanto a Operação Lava Jato, nem tão dramático quanto um impeachment e um ex-presidente indo para a cadeia. Mas havia uma sensação de caos e de perda de confiança na elite política. A esquerda não entendeu que precisava reinventar a linguagem e pensar em promessas que mobilizassem o eleitorado. É crucial enfatizar que, em 2010, o Fidesz [partido de Orbán] ganhou uma eleição livre e justa. A questão é tudo o que aconteceu depois disso.

No primeiro turno, Lula ficou em primeiro lugar, mas Bolsonaro teve uma votação expressiva. Em El Salvador, Nayib Bukele tem uma popularidade recorde. Por que isso acontece? Eles apostaram em uma política de vitimização. Fazem as pessoas acreditarem que estão ameaçadas por forças das quais somente esse líder forte, não ortodoxo, pode salvar. Essa é uma estratégia de Bolsonaro.

Ele fala com as pessoas nas redes sociais e ameaça jornalistas porque mediam e cortam seu acesso direto ao eleitorado. Ele gosta de ameaçar sociedade civil, juízes, todos que possam estar em seu caminho. Especialmente no contexto brasileiro, eu acho crucial olhar para a questão da violência física, que a gente não vê na Hungria ou na Europa. O que me preocupa realmente são as técnicas de intimidação que serão usadas contra os apoiadores de Lula.

A senhora costuma dizer que líderes autoritários atuais usam a constituição para se perpetuar no poder. Como isso funciona na prática? Tanto a Polônia quanto a Hungria são famosas pelas práticas iliberais por meio da formulação de regras legais cuidadosamente elaboradas. A grande diferença é que o governo húngaro aprovou uma nova Constituição formalmente, enquanto, na Polônia, o governo do PiS (Lei e Justiça) não tem a maioria para emendar a Constituição. Então eles mexeram no Tribunal Constitucional para que os juízes aprovassem qualquer reforma legal, mesmo quando a Constituição polonesa dizia exatamente o oposto. Nesse cenário, quanto mais o tempo passa, menos a sociedade civil confia nos meios tradicionais para defender os direitos das minorias que foram demonizadas por esses regimes.

Não importa que tipo de instrumento constitucional se tem contra a tirania. No fim das contas, a sentença dos tribunais terão de ser executadas pelo Poder Executivo

Renáta Uitz

professora da Universidade Centro-Europeia

As Constituições não deveriam ter mecanismos para conter esses ataques? As Constituições têm esses mecanismos, mas o governo Orbán está cheio de bons advogados. Eles fizeram revisões constitucionais e garantiram que esses mecanismos fossem removidos do texto ou perdessem seus efeitos. Não importa que tipo de instrumento constitucional se tem contra a tirania. No fim das contas, a sentença dos tribunais terão de ser executadas pelo Poder Executivo. A autodefesa constitucional só funciona se a elite política estiver disposta a aderir às regras do jogo. No momento, estamos enfrentando líderes que querem mudar essas regras para permanecer no cargo contra todas as probabilidades.

Nós associamos regimes autoritários a prisões, assassinatos e tortura. Como é a opressão em regimes como o de Orbán? Se você vier a Budapeste hoje, será muito agradável. O centro é bem cuidado, há bons cafés, não se vê tanques ou policiais armados. A oposição e os dissidentes não são perseguidos ou processados. A polícia não está mantendo as pessoas sob a mira das armas. No momento, temos grandes protestos de estudantes e professores em praça pública. Mas as mensagem dos manifestantes simplesmente não são ouvidas, é um grito para o abismo.

Uma lição importante para o Brasil vem das Filipinas. Lá, o presidente conseguiu ganhar com uma campanha nostálgica pela ditadura do país, enquanto há afetados pelo regime vivos. A ditadura militar no Brasil também não foi há tanto tempo. A gente subestima o poder das mídias sociais e das mentiras sobre os benefícios de uma ditadura. E acho isso particularmente alarmante no contexto brasileiro.

A senhora é professora na CEU (Universidade Centro-Europeia), que precisou mudar a sede para Viena após uma ofensiva de Orbán. Como foi viver isso? Àquela altura, eu estava em Budapeste e, francamente, não podíamos acreditar que um governo democraticamente eleito não mudaria de ideia após protestos em massa e cartas de dezenas de vencedores do Prêmio Nobel. Eles não mudaram de ideia porque não precisavam desses votos para se manter no poder. Foi absolutamente surreal.

O que vemos desde então é uma reforma radical no ensino superior do governo húngaro. E tenho plena consciência de que isso é algo que também está na agenda brasileira. No início, especialmente para os acadêmicos que estão nas universidades, ouvir que um regime como esse quer reformar o ensino superior soa inconsistente, porque essa é uma retórica antielitista, anti-intelectual.

Mas Orbán percebeu que ele pode muito bem criar centros de educação de elite e transformar as universidades em um braço do governo, o que dá mais resiliência ao seu regime. Tudo é feito de maneira muito sofisticada. Não se limita à destruição da universidade. Há potencial para um próximo passo, que é a formação da nova elite que servirá a esse governo no funcionalismo público, no Judiciário e em profissões que sustentam o regime.

A senhora acha que a sociedade civil poderia ter feito algo para impedir? A sociedade civil húngara é extremamente ativa e muito habilidosa para tomar medidas legais. Seria muito pior se não tivessem feito esse trabalho. Mas a sociedade civil não é um partido político. Se os partidos democratas perdem uma eleição, a sociedade não poderá fazer esse trabalho, porque tem uma função muito diferente. Eu realmente acredito que a sociedade civil fez tudo o que era possível na Hungria e também na Polônia. Mas, em última análise, eles não são partidos políticos.


Renáta Uitz, 49

Codiretora do Instituto da Democracia da CEU (Universidade Centro-Europeia) desde fevereiro deste ano, Renáta Uitz já coordenou o programa de direito constitucional comparado na mesma instituição, onde leciona desde 2001.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.