Negação da ditadura armou bomba golpista, diz nova presidente da Comissão de Anistia

Eneá de Stutz e Almeida afirma que atos são resultado da postura de negligenciar o regime autoritário

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Brasília

Para a nova presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, a relação entre os atos golpistas de 8 de janeiro e a ditadura militar vai além dos cartazes que pediam uma intervenção das Forças Armadas.

No entendimento da professora da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília), a invasão das sedes dos três Poderes no início do ano é resultado de décadas de negligência e falta de responsabilização por crimes cometidos por agentes do Estado na ditadura militar (1964-1985).

"Essa postura negacionista com a ditadura significa o que a gente chama de 'esquecimento recalque': uma postura de fingir que nada aconteceu, o popular varrer a sujeira para debaixo do tapete. Qual é o resultado de todo e qualquer recalque? Violência", diz Stutz em entrevista à Folha.

"Esquecer ou fingir que nada aconteceu no período da ditadura armou uma bomba-relógio, e essa bomba explodiu no dia 8 de janeiro."

Eneá de Stutz Almeida, presidente da Comissão de Anistia, durante sessão na Câmara dos Deputados
Eneá de Stutz Almeida, presidente da Comissão de Anistia, durante sessão na Câmara dos Deputados em 2019 - Cleia Viana/Câmara dos Deputados

Para Stutz, esse processo de esquecimento passa pelo desvirtuamento da Comissão da Anistia durante os governos de Michel Temer (MDB) e, principalmente, de Jair Bolsonaro (PL). Segundo ela, nesse período houve a transformação de uma comissão de Estado em uma comissão de governo.

Para a nova dirigente do órgão, esse processo começa quando Temer determinou que a comissão não mais precisava pedir perdão publicamente a cada um daqueles que eram considerados dignos de receber uma indenização por terem sido perseguidos pela ditadura.

"Quando a comissão deferia [um pedido de indenização], ela fazia uma declaração de perdão. Ou seja, vocalizava, em nome do Estado brasileiro, a garantia de que a perseguição política nunca mais iria acontecer", explica ela.

Depois, com Bolsonaro, a comissão passou a ser integrada por militares, inclusive o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, que escreveu o prefácio da biografia de Carlos Brilhante Ustra, até hoje o único militar considerado pelo Supremo Tribunal Federal como torturador —apesar de nunca ter sido criminalmente responsabilizado por isso.

Como resultado, durante os quatro anos do último governo, 95% dos requerimentos de indenização julgados pela comissão de anistia foram negados, inclusive o da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), presa e torturada na ditadura.

Stutz diz que pelo menos parte desses processos será revista. Aqueles em que for identificado uma negativa ilegal (ou seja, que a pessoa provou ter sido perseguida, mas mesmo assim teve seu pedido indeferido) serão julgados novamente.

O tamanho desse passivo ainda está sendo apurado. Estima-se que existam até 8.000 processos, dentre os julgados nos últimos quatro anos e os pendentes de análise. A presidente prevê ainda que, uma vez que a comissão volte a conceder indenizações, novos pedidos começarão a chegar.

"É uma postura negacionista, com relação à pandemia, negacionista em relação ao desmatamento e em relação à ditadura. O impacto disso não é só para quem foi perseguido politicamente e teve seu pedido [de indenização] eventualmente indeferido, mas também quem pensou de entrar com um pedido e voltou atrás por achar que não ia dar em nada", diz ela.

Para ela, no entanto, os movimentos que levaram ao golpe de 1964 e à tentativa de golpe em 2023 são diferentes.

Na época do golpe de 1964, diz, havia um cenário político internacional favorável à tomada do poder pelos militares e os defensores da ditadura tinham um projeto de poder, além de apoio de setores econômicos da sociedade.

Já no caso do 8 de janeiro, autoridades de outros países rapidamente condenaram a invasão. Na avaliação de Stutz, não havia nenhuma organização ou ideia do que fazer caso o grupo bolsonarista de fato tomasse o poder.

Ela alerta, no entanto, que isso não diminui o tamanho do risco ao qual a democracia brasileira foi submetida.

"Foi, sim, uma tentativa de um golpe de Estado. Teve ensaio no dia 12 de dezembro [quando bolsonaristas tentaram invadir a sede da Polícia Federal], depois com a [tentativa de] bomba no aeroporto e durante todo o período desses acampamentos. O ápice foi no dia 8 de janeiro", diz.

Ela afirma que a maior lição do episódio é "que a democracia sempre está em risco e que precisamos reiterar, permanentemente, a memória" daquele período.

Stutz diz que, em 2023 e em razão do orçamento curto, a Comissão da Anistia não deve ter condições de reconstruir programas de conscientização da população que foram encerrados nos últimos anos.

Diz que dentre os primeiros passos do grupo, além de uma apuração detalhada acerca do passivo de processos, também está a criação de um novo regimento. Ela afirma que o atual, feito na gestão de Damares Alves, é inconstitucional por dar ao ministro dos Direitos Humanos o poder para tomar decisões independentemente da opinião do colegiado.

Ainda não há data marcada para a primeira sessão do grupo, mas a presidente já adiantou que os encontros voltarão a ser transmitidos.

Finalmente, ela defende que trabalhar com a memória do regime militar é também entender que a violência da época da ditadura é a mesma que, atualmente, vitimiza diversos segmentos da sociedade, como indígenas, negros, as classes mais baixas e até ambientalistas. Uma "violência de Estado", diz.

"O Estado repetir essa conduta perseguidora, de um Estado ditador e totalitário, a gente não pode permitir. Enfrentar esse legado autoritário significa realmente construir o Estado democrático de Direito", opina.

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