'O que eu canto tem ficção misturada com realidade', diz o rapper Ogi

Abre a porta. "Olá! Você tem medo de cachorro?", pergunta Deborah Di Cianni, mulher e parceira de trabalho de Rodrigo Hayashi, 34, o Ogi. Fecha a porta. "Ele está lá em cima, pode subir."

Para chegar ao rapper, foi preciso, antes, passar por cima de uma pitbull. Literalmente. A Cléo, 12, estava deitada em frente à porta do quarto do sobrado no Ipiranga, zona sul, em que o paulistano mora, compõe e grava. "Pode vir que ela é mansa", convidou Ogi, que aguardava, munido de cigarros e água, em frente ao computador. "Cleozinha, fica lá pra fora", pediu. Gentilmente.

Nas duas potentes caixas de som conectadas ao micro, o músico apresentou músicas ainda não finalizadas de seu próximo álbum, "RA!", previsto para março de 2015 —o primeiro single, "Trindade Parte 2 de 3", já tem clipe circulando a internet.

Na levada das rimas e temática das letras, o estilo segue o do seu primeiro álbum solo, "Crônicas da Cidade Cinza" (2011) —que começa com um trecho emprestado do disco "Plínio Marcos em Prosa e Samba". Só que com uma produção muito mais refinada, que envolve nomes como o DJ Nave, Kiko Dinucci, Thiago França e Juçara Marçal. "De lá pra cá dei muitos passos adiante", diz.

São histórias de personagens da cidade, do motoboy ao ladrão, na luta por empregos e na dança nos bailes —nem todas com final feliz. "Sempre tive vontade de escrever letras mais soltas, mais livres, como faço hoje. Desde que eu escrevia redação na escola. Vou escrever desse jeito, contando histórias", explica o paulistano de voz arranhada que herdou o sobrenome, mas não os traços, de seu avô materno de origem japonesa.

Ao terminar, uma passada no banheiro. Lá estava a Cléo. Como uma sentinela. De boa, mas um pitbull.

Leia abaixo a entrevista com o rapper.

*

sãopaulo - De onde você tira as histórias?
Ogi -É tudo história de quebrada. Essa do [Chico Cicatriz, faixa do disco "RA!" que ele mostrou em seu computador] é sobre um cara que não pode colar na quebrada senão vai ser zoado. Só que eu vou colocando do meu jeito de contar, como eu zoaria o cara. Um mano de outra quebrada já ia falar de outro jeito. Tudo o que eu conto tem um pouco de ficção misturada com realidade, do que eu já vi acontecer de perto. É sempre assim. Se um dia eu for morar no Havaí, vou cantar sobre as ondas. Sempre vai ter uma coisa relacionada ao que eu vivo, senão não vai ter sentido.

Você vê atualmente algum estilo semelhante com o seu?
Semelhante, não. Não porque eu sou melhor que ninguém, mas os caras já acham até o meu estilo antiquado, tá ligado? Mesmo fazendo vários flows. A molecada que eu vejo vindo hoje se pega em outras coisas, numa ideia mais livre ainda —que, se fosse há uns anos, o rap não ia aceitar. Isso aqui que eu faço hoje, alguns anos atrás o rap não aceitava. Eu lembro que já fui cantar em festival e, porque eu era branco, batia sujeira. Hoje em dia tá bem mais tranquilo. A molecada de hoje tem muito mais informação. É outra época, mano. Um cara que até que faz uma coisa parecida comigo é o AXL, que eu gostei bastante.

Por que acham antiquado?
A molecada quer ouvir uma coisa que seja fácil de absorver. E pra você entender a minha música você tem que prestar atenção. Não que [outros estilos] seja errado, mas esse é o meu jeito de escrever. É onde eu tento chegar com muita entonação e "flow" [levada das rimas] pros caras.

A cena atual está bem representada?
Lógico que tá. O Emicida fez o jogo voltar a ser o jogo. Eu tinha um grupo que chamava Contrafluxo. A gente tinha dois CDs lançados, e o último foi um duplo lançado em 2007 –antes de o Emicida estar na cena. Eu fazia vários shows de graça, ninguém tinha perspectiva de viver de rap, mano. Não tinha. Aí o moleque veio vendendo o CD a R$ 2 e todo mundo dava risada. Ele vendeu trocentas cópias e começou, aí gerou outro mercado. Agora os caras estão fazendo o que o Emicida faz. Se os Racionais, por exemplo, tivessem vendido camiseta deles... As camisetas dos Racionais que tinham nas galerias naquela época eram tudo pirata, não eram licenciadas.

Mas eles ainda são a maior referência...
Você é louco?! Os Racionais são o melhor grupo do Brasil. O Mano Brown, mano, tinha que estar na Academia Brasileira de Letras. Tudo bem que vai ser difícil um preto entrar lá, sei lá, mas acho que um dia ele vai estar lá. Ele é o melhor MC. Você vê MC daquela época lá que hoje em dia rima que nem rimava nos anos 1990. O Brown, não. Cada dia ele vem com uma coisa nova. É o único cara da antiga que faz isso, por isso que o negócio é tão foda.

Qual foi a primeira música dos Racionais que você ouviu?
Foi "Pânico na Zona Sul". Eu devia ter 10 anos, foi em 1990, 1991. Tinha um cara lá do bairro, o Fábio, que já curtia rap —hoje em dia ele é engenheiro. E aí ele levava o rádio dele pro campo quando a gente jogava bola. A gente jogava bola a tarde inteira e um dia começa a música. Nunca mais esqueci: "Então, quando o dia escurece..." [canta um trecho da música]. Eu: "caralho, que porra é essa?!". Era "Pânico na Zona Sul". Aí a gente começou a fazer rap de brincadeira no bairro e tal. Eu já tinha escutado o Thaíde antes de escutar os Racionais, mas ninguém sabia definir o que era. Ninguém falava: "Isso é rap". Aí quando vieram os Racionais, sim.

Quando começou a escrever rap?
A minha primeira letra eu escrevi em 1993. Chamava "Matador de Tiras" [risos] A gente participou de um festival [ele e o amigo Ed] no Tio Sam Club. Quem ficasse entre os três primeiros na eliminatória ia gravar de graça. A gente ficou em segundo, eu e o Ed, cantando a "Matador de Tiras". Só que aí era outro jogo. Você ficava entre os três primeiros, mas eles te davam convites pra dar para os seus amigos e aí você ia gravar num disco de vinil. Imagina eu que não tinha público. Aí em 1994/95 eu parei de escrever e pensar em seguir carreira, como eu tinha o sonho quando era mais novo, e comecei a pichar muro. Eu voltei a escrever rap mesmo sério em 2002. Em 2003 eu formei o Contrafluxo com o Mascote e com o Ed, e conheci do Dejavu. Em 2005 a gente lançou o primeiro disco, que é o "Missões e Planos". Em 2007 a gente lançou o último CD do Contrafluxo, o "Superação" –um disco duplo. Só que aí o pessoal começou a ter outra correria, e eu nunca ia parar de fazer rap. Não só por hobby, mas pra colocar coisa na rua. Acabei fazendo o "Crônicas". A primeira música do "Crônicas" eu lancei em 2009, "Premonição", um single. Aí na sequência lancei "A Vaga". E em 2011 o disco saiu.

O que mudou?
Eles [no passado] não tinham condição de fazer um som que nem eu faço hoje. Gravar antigamente era mó sacrifício, tinha que pagar o estúdio, que era caro... Hoje em dia o cara grava na casa dele, e isso facilita. Acho que daqui a alguns anos o rap vai ser considerado música popular. A tendência é crescer mais ainda, mas ainda falta. Tem gente que ainda ouve rap e torce o nariz.

Mas aí o cara vai pra TV e chamam ele de vendido.
Foda-se! O cara tem que ir pra televisão, senão o rap vai ficar nesse nicho em que ninguém ganha dinheiro. Era proibido ganhar dinheiro com o rap até um tempo atrás. Se você cobrava pelo show, vinham reclamar. Tinha que ficar no sofrimento. Sofrimento é o caralho. Se eu fico 12h, 15h escrevendo uma rima, trampando no meu som, nada mais justo que eu faça dinheiro com isso. Ainda tem esses caxias do rap com esse pensamento que acha que tem que ir trampar no trampo dele ali e fazer show de graça, ficando na humildade, sofrendo. Não, mano. Sofra você. Quem quiser sofrer que sofra.

Você foi tendo mais liberdade ao longo do tempo?
Sempre tive vontade de escrever letra mais solta, mais livre, como faço hoje. Desde que eu escrevia redação na escola era contando história. Eu tinha facilidade pra fazer isso –eu leio bastante, desde criança. Antigamente tinha um padrão pra você fazer rap. Mas os cabeças hoje se ligaram que o negócio é livre. É música, é poesia.

De onde você é?
Eu morava no Jardim Celeste, que era do lado do Campanaro [Diadema]. Era um lugar bem violento na época. Você ia jogar bola e no barranco tinha um morto. Matavam muita gente na época, a polícia matava e também os caras, entre eles. Muito da minha música vem disso. Eu cresci em periferia, e pichando muro também aprendi muita coisa. Daí que vem as minhas ideias. Quatro amigos do time de futebol já morreram assassinados. Amigo mesmo, de infância. De conviver desde os seis anos até os 19, aí o cara morre. Por droga, porque era assaltante, porque era traficante. E é daí que vem as ideias.

Acha que o rap ainda precisa ser feito por quem mora na periferia pra ter legitimidade?
Eu considero o rap arte. Eu nasci na periferia, mas sou branco. Então eu não posso cantar rap? Tem essa coisa de que é a cultura dos pretos... E é. Mas é a cultura da periferia também. E hoje em dia não é só nem da periferia, é urbana também. É a música da rua, que nem o samba. Se o cara faz MPB que nem o Kiko Dinucci, é música da rua. Não tem essa coisa de legitimar. Quem quiser ouvir, ouve. Quem não quiser, ouve outro. É assim que segue, não tem essa.

O que de marcante aconteceu no rap nacional em 2014?
Tá acontecendo bastante coisa, bastante festa. E tá saindo bastante CD. Só esse ano saiu do Criolo ["Convoque seu Buda"], do Rael ["Diversoficando"], Racionais ["Cores e Valores"]. Saiu Costa Gold ["Posfácio"], AXL ["A Vida Antes de Axel Alberigi: Antes de Tudo"], saiu Coruja, Kamau... Há um tempo atrás, saia um ou dois discos por ano. Rolou o SP RAP, que é importante -mas isso já rolava, o problema é que antes morria gente nos festivais, e isso queimou o filme. Hoje em dia tá mais tranquilo.

Você já deu aulas na Febem [hoje chama-se Fundação Casa], certo?
Eu dava aulas de rima, primeiro na do Tatuapé e depois na do Brás. Como peguei só bucha, me mandaram pro Brás. No Tatuapé o controle era dos moleques, que nem cadeia. No Brás era moleque andando com cabeça raspada, mão pra trás e cabeça baixa.

Como chegou lá?
Eu lancei o primeiro disco do Contrafluxo, aí um dia o coordenador de uma ONG ouviu, chamou pra uma reunião e chamou a gente pra trabalhar lá. Eles diziam que a mensagem que a gente passava era boa pros adolescentes. Era umas quatro vezes por semana. Foi da hora, mas o psicológico fica muito abalado. Você vê muita injustiça, fica com muita neurose.

O rap brasileiro tem uma cara hoje em dia?
A cara do rap brasileiro atual é: tem rap em Goiânia, no Espírito Santo, no Amazonas... No Nordeste tem muita coisa. Se falar que é só de São Paulo você está louco. Acho que o rap no Brasil tá um adolescente. Está entrando na fase adulta ainda, mas ainda é adolescente. Tem muita coisa pra aprender, muita coisa pra acontecer. E eu não posso parar, né? Se eu parar de fazer eu não consigo. Eu gosto de fazer música. Mas não me vejo como líder nem nada, ninguém tem que ter líder. Desde que eu consiga tocar em alguém ali quando eu faço uma música. É isso que vale pra mim.

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