Carnaval 2015

De Vai-Vai a Yoko Ono, Osvaldinho da Cuíca faz 75 anos de samba

Primeiro cantou o pássaro-preto. Depois o pica-pau, a seriema, o inhambu-chororó e o bacurau. A cada nova hora, o relógio na parede da cozinha daquele sobrado na Vila Monumento, zona sul de São Paulo, soava a gravação de um pássaro diferente. O Osvaldinho da Cuíca tem muita história pra contar.

Nascido Osvaldo Barro no Carnaval de 1940 e prestes a completar 75 anos no dia 12 de fevereiro, o original do Bom Retiro —eleito o primeiro Cidadão Samba Paulistano (em 1974) e homenageado na Câmara Municipal— esteve presente em um tempo da música e cultura brasileira de dar saudade a quem não o viveu.

"Minha vida foi coroada de privilégios. Toquei e gravei com os maiores nomes da música. Adoniran Barbosa, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Cartola... E estrangeiros, como o Bill Halley", lembra o filho de brasileira com italiano. "Até com a Yoko Ono!", completa. Ele participou da performance da artista no Theatro Municipal em 2007. "Dei um chapéu pra ela, e vi ela usando na Europa."

Só pelo grupo Demônios da Garoa foram três passagens. A primeira teve início em 1968, quando ele foi convocado pela gravadora Chantecler a comparecer ao estúdio.

"Eu gravava quase todo dia, então entrei e fiquei sentado, esperando. E eles [Demônios] ali. Até que um fala: 'Porra, cadê esse cuiqueiro desgraçado que não aparece?'. Falei: 'Sou eu!'. Ele: 'Ah, é você? Achei que fosse aparecer um baita de um negão' [risos]", conta. O grupo participaria da Bienal do Samba, na Record, com a música "Mulher, Patrão e Cachaça" e precisava de alguém no instrumento.

"Era um triângulo amoroso de três instrumentos. O cavaco falava com a cuíca, a cuíca com o violão. E minha cuíca falou, chorou... Foi uma novidade. Não ganhou o festival, mas estourou. Aí eles foram obrigados a me contratar, porque tinham que tocar aquilo da gravação —e só eu sabia fazer."

Cerca de dois anos depois, Osvaldinho se afastou por desencontro de agendas. A parceria seria retomada na década de 1980, sendo novamente rompida pelo mesmo motivo. "De 91 pra 92" eles voltaram a se apresentar juntos.

Até 1999, quando separaram-se pela última vez. Acontece que o cuiqueiro é Vai-Vai de coração, e —bom, melhor deixar ele contar. "Levei eles para o Vai-Vai e ficaram bestas. Aí num Carnaval a Rosas de Ouro fez um samba sobre os Demônios. Contribuí e até desfilei. Expliquei pra diretoria do Vai-Vai que era homenagem e tal." [Naquele 1998, a escola do Bexiga venceu com o enredo "Banzai! Vai-Vai". O grupo alvinegro ainda levaria os títulos por mais três anos consecutivos].

Enfim, eles gostaram tanto que no ano seguinte quiseram mais. "Aí falei não. Mesmo porque não ia dar tempo, o Vai-Vai desfilava e a Rosas de Ouro vinha logo depois. Fui com o Vai-Vai, toquei pra caramba. Depois eles passaram com o carro da Rosas de Ouro. E eu acenei. Pra quê? [risos]."

Deu que na semana seguinte não o levaram a um show que ele mesmo tinha descolado. "Não fui mais, né?", diverte-se o músico, garantindo que hoje já são amigos de novo.

A relação de Osvaldinho com a Vai-Vai se estreitou em 1972, quando o percussionista foi convidado a participar do processo de oficialização do então cordão carnavalesco em escola de samba (daí o motivo de o Osvaldinho ainda se referir ao grupo pelo artigo 'o', e não 'a' —costume entre os mais antigos).

"Eu já era famoso na noite e trabalhava numa boate perto. Como tinha experiência, comecei a mexer na estrutura, com mão de ferro", lembra o músico, fundador da ala dos compositores do grêmio recreativo.

Desde então, teve seis sambas seus desfilados pela Vai-Vai. Três campeões —incluindo "Na Arca de Noel Quem Entrou Não Saiu Mais", em 1978, o primeiro título da escola que completa 85 anos em 2015.

Ainda teve músicas selecionadas em outras escolas. "O primeiro samba a pisar no Anhembi foi meu e do Maurinho da Mazzei. 'Cabeças e Plumas', da Passo de Ouro", diz, referindo-se à primeira escola a adentrar o sambódromo, inaugurado em 1991.

Ele também afirma ter ajudado na fundação das escolas Acadêmicos do Tucuruvi e Gaviões da Fiel. "'Vai Corinthians' [1976] fui eu e o Papeti que fizemos. Divulgou o refrão que eles cantam no estádio até hoje", esbanja o corintiano.

M. Davi de Barros/Folhapress
O músico Osvaldinho da Cuíca e banda se apresentam em estúdio de rádio de São Paulo
O músico Osvaldinho da Cuíca e banda se apresentam em estúdio de rádio de São Paulo

OUTROS CARNAVAIS

Foi na porta de uma gafieira no Tucuruvi que o Osvaldinho começou. Tinha "uns 14 anos" e trabalhava como engraxate em frente à casa de dança.

"Aí desandou. Batucava muito na caixa [que usava para lustrar sapatos], e era imbatível. A partir daí comecei a ir aos cordões. Fui baliza, apitador, ritmista... E fui levado para o rádio muito cedo. Toda rádio tinha orquestra, então músico tinha sempre trabalho", recorda Osvaldinho.

Em 1958, compôs seu primeiro samba, para o cordão Garotos do Tucuruvi. Foi naquele grupo que começou a fazer instrumentos. "Tinha vocação para a percussão, então comecei a aprender a tocar tudo."

A alcunha Osvaldinho da Cuíca foi-lhe dada na época em que participou do grupo folclórico de Solano Trindade, poeta brasileiro. "Por causa da habilidade que eu tinha de fazer sons diferentes" —até hoje ele diz solar o hino nacional dos países em que se apresenta.

O músico ainda produziu um intenso trabalho de resgate e manutenção da memória do samba: ajudou na produção de um documentário sobre Geraldo Filme, gravou o álbum "História do Samba Paulista 1" (1999) e é coautor de "Batuqueiros da Paulicéia" (2009). Ele ainda se apresenta em rodas de samba em centros culturais regadas a batuques e relatos sobre o passado.

"Falta muito interesse pela memória. Você pega qualquer país da Europa, os Estados Unidos... Vê como é a história do jazz, tem museus, tem tudo... Com seriedade. Aqui é um absurdo", protesta —ele é bastante crítico da política e do Carnaval atual.

Em 2014, Osvaldo lançou o álbum "Velho Batuqueiro", segundo disco depois do câncer de garganta que o fez passar por uma cirurgia que alterou sua voz no início dos anos 2000 –ele ainda viria a sofrer um derrame depois. "Mas eu estou bem. Tá ruim, mas tá bom."

"Me sinto feliz com o que conquistei. Traz felicidade. Não sei se vai ser o último ano que puxo a cuíca. Nesse CD foi difícil tocar, vai perdendo velocidade. Voltava pra casa e treinava pra gravar como eu queria. É que nem jogar futebol, né? Mas quando eu subo no palco, me sinto revigorado. Parece que incorporo", diz o músico que vive de direitos autorais, shows e aposentadoria de seus anos de diferentes trabalhos —como auxiliar de enfermagem.

Por último piou o sabiá-coleira. 19h. Naquela terça, o ensaio do Vai-Vai ainda teria sua puxada. "Cuíca, cueca... Tá tudo aqui. Vamos?!". O Osvaldinho da Cuíca é o Carnaval de um homem só. Velho. Mas velha guarda.

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