Médicos acima dos 70 anos dobram em dois anos no Brasil

Eles ingressaram na medicina muito antes do surgimento de tecnologias como a tomografia e a ressonância magnética. E continuam na ativa assistindo a cirurgias robóticas e a drogas biológicas de última geração.

Em dois anos, mais do que dobrou a participação de médicos acima de 70 anos no mercado de trabalho brasileiro. Eram 10,8 mil em 2011, segundo dados da publicação "Demografia Médica". Em 2013, somavam quase 25 mil. Não há dados específicos da capital paulista.

Segundo especialistas, a maior presença de médicos idosos no mercado é reflexo da maior expectativa de vida da população (estimada em 75 anos). Mas, para eles, no caso dos médicos, é necessária uma discussão sobre os limites da atuação e a hora de parar.

"Muitos seguem trabalhando até quando não conseguem mais sair de casa", diz Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo).

Segundo ele, nem todos os médicos conseguem enxergar as limitações impostas pela idade. Tanto que, eventualmente, aparecem casos no Cremesp em que o médico idoso é denunciado por colegas ou pacientes por cometer imperícias no exercício da profissão. "São raros, mas, quando aparecem, normalmente são cirurgiões que não têm mais a mesma habilidade de antes", explica.

Nesses casos, o conselho chama o médico e o aconselha a parar. Tem um limite de idade para isso? "Não. Vai depender das condições físicas e cognitivas", afirma Luna Filho.

Segundo ele, o paciente percebe quando o seu médico está fragilizado pela idade e naturalmente se afasta dele. "Tenho colegas que foram ótimos professores, que tinham um movimento grande e que, com a idade avançando, o consultório vai definhando, até o momento que o profissional percebe que não vale mais a pena continuar."

O endocrinologista Ademar Ferreira de Carvalho Filho, 90, trabalhou regularmente até os 85 anos.

Formado na Escola Paulista de Medicina (Unifesp), ele atuou no início da carreira como cirurgião. Depois, especializou-se em endocrinologia. "Eram 12 horas de trabalho por dia, sala de espera sempre cheia", lembra Carvalho, que decidiu se aposentar quando perdeu parcialmente a visão.

Na avaliação do médico Alexandre Kalache, 70, especialista em envelhecimento, nem sempre a autocrítica do profissional é suficiente para fazê-lo parar. "Por isso é importante que os conselhos médicos estejam atentos para essa situação." Além das condições físicas e cognitivas, ele lembra que é relevante que o médico idoso se atualize para continuar exercendo a profissão. "Há estudos mostrando que, a cada sete anos, tudo o que você sabe de medicina precisa ser atualizado, porque há muitas mudanças."

Por outro lado, o conhecimento acumulado ao longo da vida é um fator muito positivo, na opinião de Kalache. "Não pode haver preconceito em relação à idade."

É o que também pensa o neurocirurgião Raul Marino, que, aos 77 anos, mantém a rotina de operar tumores cerebrais, aneurismas e outros problemas no cérebro e na coluna no Hospital Sírio-Libanês e na Beneficência Portuguesa. "Me sinto muito bem, faço atividade física, musculação, caminhada, natação. Vou a congressos médicos, assino todas as revistas científicas de neurologia."

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Além disso, explica, a prática cirúrgica é hoje um trabalho em equipe e menos extenuante em relação ao passado. "Antes eu operava sozinho. Eram oito, nove horas de cirurgia sem sair do campo cirúrgico."

Para Marino, a questão da idade no exercício da medicina é relativa. "Tem muito cirurgião de 30 anos que já deveria ter parado. A maior parte das cirurgias que faço é para consertar erros de outros mais novos." Ele diz ter outros planos para quando "envelhecer". "Quero montar um curso de bioética, escrever mais livros", afirma Marino, autor de nove obras acadêmicas e literárias e que será empossado no dia 29 na Academia Paulista de Letras.

MULHERES

No universo de médicos septuagenários ou mais, as mulheres são a minoria, representam 14% do total. Em parte, isso é reflexo de uma época em que o público feminino era raro nas escolas de medicina, ao contrário do que ocorre hoje, em que a área vive um processo de feminização.

Na cirurgia, a médica Angelita Habr-Gama (prefere não revelar a idade) foi pioneira em várias cadeiras. Formada em 1957 pela USP, foi a primeira mulher titular em cirurgia da universidade, primeira a ser aceita pela sociedade americana de cirurgia e a primeira premiada pela sociedade europeia de cirurgia.

A médica faz questão de frisar que não se considera uma idosa e que não aparenta a idade que tem. "Tenho uma ótima saúde, enxergo e escuto bem, tenho uma coluna boa, não tremo, me alimento bem. Levo a vida que sempre vivi", afirma ela.

Angelita conta que acorda às 6h30 todos os dias e inicia uma rotina de tirar o fôlego de muita gente mais jovem: dá aulas, participa de reuniões científicas, escreve artigos, faz cirurgias e atende no consultório. São 12 horas por dia de trabalho.

"Tenho um consultório movimentadíssimo. Encerro às 21h porque coloco um ponto final [no atendimento]."

A cada dois meses, a médica viaja ao exterior para dar conferências ou aulas. Acaba de retornar de um período no Estados Unidos, onde atuou como professora visitante nas universidades Harvard e Johns Hopkins.
"Com saúde, muito estudo e gostando do que faz, não há limite de idade. Pelo contrário, a idade traz mais conhecimento. Parar para fazer o quê?", questiona a cirurgiã.

Nas horas de lazer, ela gosta de jantar com amigos, ir ao cinema e a concertos com o marido, Joaquim Gama, também cirurgião. "Aposentar está totalmente fora dos meus planos", afirma ela. "No papel", teve que se aposentar na USP em 2003, quando completou 70 anos.

Outra que teve que aderir à aposentadoria compulsória aos 70 (ou "expulsória", como ela prefere chamar), é a médica Silvia Regina Brandalise, 72, que também não pensa em parar. "Tenho planos profissionais por pelo menos mais 20 anos."

Há três décadas à frente do Centro Infantil Boldrini, de Campinas (SP), Silvia está envolvida em cursos de capacitação de profissionais, na clínica de crianças com câncer e em diversos projetos de pesquisa, entre eles um sobre os fatores ambientais relacionados ao câncer, como o uso de pesticidas e hormônios.

"Não tenho perfil de ficar andando com o cachorrinho na lagoa", brinca a médica, que tem eventos científicos agendados até meados de novembro, incluindo conferências em São Paulo, no Rio de Janeiro e em universidade de Oxford.

Silvia lembra que ficou "triste" quando teve que se aposentar na Unicamp, mas conta que se "retroalimentou" quando os alunos da graduação da universidade começaram a procurar o Boldrini em busca de cursos de férias na área da prevenção e de tratamento do câncer infantil.

"A idade cronológica tem o seu papel. Talvez a gente caminhe um pouco mais devagar em relação a antes, mas, quando se centra e se persegue um objetivo, não tem limite", afirma ela, mãe de quatro filhos e avó de sete netos. Silvia conta que trabalha sete dias por semana.

Para ela, envelhecer é sinônimo de adaptação. "Quando as pernas não andarem mais, tem a bengala. Quando a bengala não funcionar, tem a cadeira de rodas. O importante é ir em frente."

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