'Ainda pensam que ir ao teatro é coisa para gente chique', diz tenor paulista

Da banda Eros, na qual aos 15 anos cantava hits de Aerosmith, Deep Purple e Creed em bares e baladas de Barrinha (no interior de SP), Jean William foi o único a fazer da música a profissão principal.

Hoje, ele tem disco gravado, se apresentou para o papa Francisco em 2014 e é um tenor lírico celebrado, do tipo que colunistas de rádio sugerem em suas sessões de dicas culturais –como aconteceu, por coincidência, na emissora sintonizada no carro na manhã de segunda (14), quando a sãopaulo seguia para seu apartamento em Pinheiros, onde foi feita a entrevista.

Já tendo se apresentado nos EUA –ao lado da Bachiana Filarmônica, com quem cantou entre 2009 a 2011– e Itália, ele volta ao palco do Theatro Municipal, desta vez para dar sua "voz gordinha de timbre escuro" (como descreve seu tom) ao arcanjo Uriel na composição "A Criação", do austríaco Joseph Haydn (1732-1809) –também haverá presença de dois barítonos e duas sopranos.

Com ingressos custando R$ 5, o espetáculo, marcado para as 11h, tem regência de Martinho Lutero Galati de Oliveira e abre a temporada do Coral Paulistano, que celebra 80 anos.

Sentado em sua sala, o paulista —que tem um teatro com seu nome na cidade em que cresceu e viveu com a família— contou sobre sua vida "normal" entre a Europa e a rua dos Pinheiros, na zona oeste.

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sãopaulo - Há muita diferença entre casas de espetáculo no exterior e em SP?
Jean William - Sala São Paulo, Theatro Municipal, Theatro São Pedro... As casas daqui são de uma qualidade exímia. Talvez exista diferença quando você diz que se apresentou no Lincoln Center, em Nova York, porque ali comparecem, em todas as temporadas, grandes ídolos nossos –e ocupar um espaço em que tanta gente grande já passou traz uma certa responsabilidade. Mas São Paulo está no circuito internacional e tem todas as condições de representar e receber o cenário artístico mundial tranquilamente.

Existe em SP o costume de ir a concertos e espetáculos eruditos?
Existe a divulgação. O que precisamos vencer é essa cultura de inferioridade. Por exemplo: quando convido meus avós para virem me assistir, eles ficam tímidos. Porque ainda existe a ideia de que ir ao teatro é coisa de gente chique.

Mesmo com o ingresso muitas vezes mais barato que de jogo de futebol?
Não é coisa só para gente chique. E à medida que se dá mais espaço para que as pessoas se conscientizem de que é possível entrar nesses espaços –e que esses espaços pertencem a elas–, elas vão se sentindo cada vez mais bem–vindas e vão rompendo essa barreira do preconceito.

Você também tem um espetáculo de jazz. Qual a proposta deste show?
Conta um pouco da história da relação do jazz com grandes compositores, como George Gershwin e o Leonard Bernstein. Esse é o carro chefe do show, que se chama "Tonight". O que eu escolhi é a questão das minorias. O Gershwin retrata, em "Porgy and Bess", a história de negros no sul dos Estados Unidos. E o Bernstein trata da questão dos latino-americanos. Eu mesmo já vivenciei situações chatas relacionadas à cor de pele, à classe social... E no momento que a gente está vivendo agora, foi uma chance de, de repente, fazer a partir da arte um grito. Existe beleza na minoria, existe espaço para todo mundo.

Que tipo de situações preconceituosas foram essas que você já viveu?
Ao longo do caminho encontrei pessoas que tentaram me desmotivar, que falavam que não existem príncipes negros na ópera... Eu não coloquei isso na minha vida nem levantei como uma bandeira para que fosse essa a causa da minha carreira. Mas não tenho nenhum problema em abordar esse problema, porque acho que coisas como racismo e homofobia deveriam ser definitivamente excluídas da sociedade.

Você toma cuidados em relação à voz? Fuma? Bebe? Come de tudo?
É como um atleta: no período em que você vai ou está se preparando para cantar é essencial tomar cuidados. Mas eu tenho uma vida absolutamente normal, sem nenhum tipo de privação. Por exemplo: eu não tomo água gelada, mas não por causa da voz. Eu é que não gosto. Não fumo. Mas gosto, de vez em quando, por exemplo, de bebida alcoólica. É claro que eu não vou beber duas semanas antes de estrear uma obra importante, mas no fim de semana, às vezes

E você mora ao lado da rua dos Pinheiros, com restaurantes e bares.
[Risos] Pois é. Tudo o que é feito com cuidado e moderação Eu faço muita coisa a pé pela região. Quando me mudei para São Paulo, em 2009, aluguei um apartamento na Teodoro Sampaio. Depois, vim para cá [na rua Joaquim Antunes].

Você é reconhecido na rua?
De vez em quando, sim. No prédio também. Antes, eu tinha um piano, então fazia ensaios no meu apartamento. Uma vez uma senhora veio aqui e perguntamos se estava incomodada. Ela: "Não, não. Pelo contrário. Eu sou muito sozinha e a música é uma companhia". Tem uma moradora aqui do bairro que diz que sempre abre a janela e fica me ouvindo ensaiar. Já trouxe quarteto de cordas para treinar aqui... Até bateria já veio, por causa do jazz. [risos]

Como você começou e quando descobriu que tinha voz de tenor?
No começo dos estudos eu era tido como barítono, até que um professor me "diagnosticou" como tenor [risos]. Mas comecei na igreja (meu avô tocava violão e eu cantava na missa). Depois, entrei em um conservatório, na USP (no curso de bacharelado de canto e arte lírica). Quando me mudei para São Paulo, conheci o João Carlos Martins e muita gente do meio, e cantei em diferentes lugares. Minha aparição começou sendo um pouco mais midiática, o que tem coisas negativas, mas também muito positivas.

Negativas e positivas como?
Muitas vezes vejo na minha geração e nas mais novas uma vontade apenas de fama e menos dedicação a estudo, técnica, preparo Se posso deixar uma impressão sobre tudo que vivi até agora –que não é muito, mas já é algo– é que ao mesmo tempo em que tive abertura para essa questão midiática, fui incentivado a me aprimorar. O jovem artista nos tempos atuais tem que sempre buscar esse equilíbrio. E viver feliz, mesmo que não seja uma pessoa famosa. Precisamos aprender a valorizar a arte como uma ferramenta de evolução para a sociedade, e não apenas um jogo para se transformar em uma celebridade.

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