Fortalecidos após ocupações, secundaristas de SP renegam entidades estudantis

O estudante Carlos Ramiro Bonifácio, o Cacá, 15, mora em Diadema e tem um canal no Youtube sobre games. Seu maior sucesso nas redes sociais, entretanto, é o vídeo em que, com a fala afiada, avisa em audiência pública da Assembleia Legislativa de São Paulo: "Se tiver que ocupar de novo, a gente ocupa, faz o que precisar. Nossa luta é pela educação". Postado há cerca de dois meses no Facebook, o vídeo foi visto mais de 3,5 milhões de vezes.

Cacá foi um dos estudantes que ocuparam a escola estadual Diadema no dia 9 de outubro de 2015. A unidade na Grande São Paulo foi a primeira de uma onda que tomou quase 200 escolas no Estado em protesto contra o projeto de reorganização escolar do governo Geraldo Alckmin (PSDB).

As ações e sua posterior vitória –a proposta do Estado foi suspensa em dezembro– marcaram a entrada de uma nova geração no movimento estudantil, formada e capitaneada por jovens secundaristas.

Parte da geração Z (entre os anos de 1990 e 2010), os garotos e garotas são altamente conectados, não têm histórico de militância política, nem pais politizados, embora se identifiquem com a ideologia da esquerda.

João Wainer/Folhapress
Paula Nunes, 17 Yasmin Barranqueiro, 17 Carlos Ramiro Bonifácio, 15 Rafaela Bonifácio, 16 (foto João Wainer/Folhapress)
Rafaela, 16, Carlos, 15, Yasmin, 17, e Paula, 17, que participaram de ocupações em São Paulo

Trazem também para a mesa questões que não estão diretamente ligadas às suas demandas, como feminismo, diversidade social e racismo. "É uma pauta prática maior que a do papel", afirma Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC.

O aprendizado da militância foi na marra, de olho nos protestos organizados pelo MPL (Movimento Passe Livre) em 2013, de orientação anarquista. Agora, autonomia, horizontalidade e coletividade são as palavras de ordem, repetidas em "jograis" (um fala, todos repetem), assembleias e redes sociais.

"Percebemos que, infelizmente, a gente tem que cutucar a onça com a vara curta para que algo seja feito", diz Cacá. "Depois da ocupação, ganhamos autonomia, passaram a nos escutar. Não sei se por saberem que temos o que falar, ou por medo de que façamos mais."

Na nova organização, entidades estudantis, sindicatos e partidos, historicamente fortes na mobilização desse público, perderam espaço. Em vez de decisões centralizadas por entidades estudantis como UNE e Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), as ocupações de agora foram organizadas, em geral, de forma autônoma pelos alunos, com a ajuda da internet.

"As redes sociais alienam, mas favorecem uma organização que foge de padrões mais burocráticos e favorece o processo de socialização para refletir politicamente", diz a coordenadora do curso de psicologia da Universidade Católica de Santos, Maria Izabel Stamato, que pesquisa protagonismo juvenil.

Durante as ocupações, muitos alunos reclamaram, inclusive, que as entidades estudantis tentavam roubar o protagonismo do movimento autônomo. "As entidades querem falar que estão lutando pela gente, mas a gente não precisa de um representante", afirma a estudante Paula Nunes. "São pelegos."

A palavra é usada pelos secundaristas para designar figuras que atuam em compasso com os governos, o que inclui também sindicatos, na visão dos jovens.

O presidente da Umes (União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo), Caio Guilherme, 19, diz que a entidade circulou em cerca de 30 ocupações de escolas no ano passado. "Eu duvido que sem os movimentos o negócio teria sido tão grande", afirma, defendendo a importância das entidades estudantis.

Na avaliação da presidente da Ubes, Camila Lanes, 20, é positivo que haja uma nova forma de mobilização. "A gente tem aprendido muito com as ocupações. Temos divergências pelo formato de organização e diálogo. Mas as pautas que nos unem são maiores."

A estudante Vanessa da Silva, 17, tem posição diferente sobre as entidades. Ela já integrou a Umes e, hoje, é militante do Juntos!, ligado ao PSOL. "As organizações nos deram apoio, principalmente com a alimentação. É mais uma questão de saber lidar."

"Estou num coletivo, mas também faço oposição lá dentro e não me mobilizo para o que não concordo. A militância é minha. A nossa geração é assim: tem muito lugar pra militar, muito coletivo a ser construído", diz.

MARCO

Especialistas já apontam as ocupações em São Paulo como um marco na história da mobilização juvenil no país. A tática, usada neste ano por escolas técnicas estaduais em protesto pela falta de merenda, foi reproduzida no Rio, Espírito Santo, Ceará e em Minas. Por meio de um grupo no WhatsApp, mais de mil estudantes do Brasil se conectam.

Para o professor Salomão Ximenes, o movimento colocou em xeque a estrutura burocrática do Estado, inclusive dos canais existentes de participação. "É uma nova etapa de mobilização, por conectar ação direta e desobediência civil, o que não se via há muitos anos", diz ele.

O secretário de Educação de São Paulo, José Renato Nalini, admite que não é fácil lidar com a nova forma de comunicação. "É fato novo que, em alguns minutos, as pessoas possam se comunicar e se congregar, mudar o trajeto de manifestações."

A organização sem uma liderança definida também se mostra um desafio para o poder público. "Não é possível você dialogar quando, de um lado, há só um representante da autoridade e, de outro, todo mundo falando junto", diz Nalini, no cargo desde janeiro. Ele substituiu Herman Voorwald, que pediu demissão após o governador recuar e suspender a reorganização dos ciclos das escolas estaduais como resposta às ocupações.

Apesar de afirmar que há um lado saudável nas ocupações, que revelam o desejo de ser ouvido por parte dos estudantes, Nalini demonstra restrições com o método.

"A gente tenta mostrar que, quando existe ocupação, invasão, em escola, o prejuízo é dos pobres. Interessante seria que essa energia fosse canalizada para propostas factíveis", diz o secretário, que lista as seções "fale conosco" dos sites do governo e a ouvidoria da pasta como canais para a comunicação com o poder público, além de garantir receber qualquer estudante que queira se reunir com ele em seu gabinete.

-

GERAÇÃO OCUPA

Estudantes fazem parte de nova fase do movimento estudantil

Heudes Oliveira, 18
ex-aluno da E.E. Fernão Dias

Quem viu Heudes na linha de frente dos protestos do MPL de 2013 e na ocupação no Fernão Dias, em Pinheiros, não imaginaria que sua militância começou por acaso. Foi no início do ano letivo de 2013 que um professor perguntou aos alunos se gostavam de política. "Não participo e não gosto de político", respondeu Heudes.

"Quando você decide ir para uma escola pública, é uma escolha política", rebateu o educador. "Quando não cobra do governo o que ele deve fazer, também."

Maio de 2013, Virada Cultural. Um lambe-lambe no centro da cidade convoca o jovem, ainda sob efeito da provocação do professor: "Manifestação contra o aumento da passagem. 6/6. Theatro Municipal". Decidiu ver qual era; não parou mais.

Hoje, é entusiasta de organizações horizontais e tem como referência política o guerrilheiro Carlos Marighella. "Com hierarquia, as coisas são decididas mais rapidamente, é verdade. Mas desconstruindo isso, avançamos mais. Podemos estar pior que uma entidade, mas temos mais possibilidade de mudança."

Criado em Embu das Artes, na Grande SP, foi para o Fernão na 6ª série por ser próximp ao trabalho do pai -tanto ele, que é porteiro, quanto a mãe, dona de bar, não concluíram os estudos. Atualmente, Heudes estuda para o vestibular de direito. Pensa em trabalhar com temas como educação popular e reinserção de presos.

-

Rafaela Bonifácio, 16
Carlos Bonifácio, 15
estudantes do 3º ano e 1º ano do ensino médio da escola estadual diadema

Em meados de 2013, Rafaela, então com 12 anos, caminhava para a escola quando encontrou uma manifestação pela redução da tarifa de transporte público, organizada pelo MPL, na principal praça de Diadema. "Estava indo para a escola, liguei para a minha mãe e falei que não ia, para ficar no ato", diz.

"Eu acho que, simbolicamente, 2013 não acabou ainda", reflete. Parte do grupo de estudantes que iniciou a ocupação da escola estadual Diadema, no final de 2015, ela conta que a inspiração veio de um pedaço de papel: a cartilha "Como ocupar um colégio?" do coletivo O Mal Educado, criado em 2012.

"A gente recebeu cartilha e começou a ler. Como não havia diálogo com o governo, nos organizamos para ocupar e, rapidamente, todo mundo apoiou. Pareceu telepatia, simultaneamente outras escolas começaram a ser ocupadas, só crescia", diz.

Rafaela teve companhia do irmão, Carlos (o Cacá), na organização do protesto. Mas não parou por aí e acabou envolvendo toda a família.

A avó, Célia, ficou responsável por cortar lenços da cor laranja para amarrar no braço dos representantes das comissões responsáveis por cada aspecto da organização. "A família toda apoiou o movimento. A ideia pegou tanto que as cores do nosso grêmio, criado neste ano, são preto e laranja", conta.

A auxiliar administrativa e estudante de direito Katia Patricia Boani, 40, vê com entusiasmo a participação política dos filhos Rafaela e Carlos, o Cacá. "Eu cheguei a dormir com eles na ocupação", diz a mãe. "O pai e a avó ficam com mais medo, mas eles estão fazendo política e cidadania, não aceitam que rasguem a Constituição."

-

João Vitor Seixas, 18
ex-aluno da E.E. Roberto Mange, cursa história na Unifesp

A organização atual refuta lideranças. Mas, naturalmente, alguns estudantes acabam se colocando na "vanguarda" das decisões. É o caso de João Vitor, hoje no 1º ano de História da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Não é raro ver o estudante de cabelo black power na linha de frente de assembleias e passeatas. Foi assim em várias manifestações e ocupações de 2015 e 2016.

A curiosidade levou Seixas para um dos atos de 2013, mas só no ano passado a militância virou prática -e também discurso. "Quando comecei a militar, foi ficando claro que existiam contradições na sociedade e o quão segregados eu e meus amigos éramos." Sua escola fica no Grajaú, no extremo sul da cidade. Tem três irmãos, o pai é aposentado e a mãe, dona de casa.

O estudante discute as estratégias do movimento –seja durante os atos ou no planejamento. Sabe que reivindicações mais abstratas, como a "melhoria da educação", têm menor adesão do que pautas concretas. "Mas acredito que a questão em jogo não é só a conquista das pautas, é também como vamos trabalhar com a consciência da população, dos militantes."

Citando Rosa Luxemburgo, ele diz que essa "consciência" interfere pouco na prática, mas é "fundamental para o discurso". "Dentro de um movimento horizontal, nem todos têm acesso a esse discurso. E sem uma pauta fácil, muita gente desmobiliza."

Para ele, o momento é de voltar para o trabalho de base, como antes das ocupações. "Uma demanda de muitas escolas é a quadra esportiva, por exemplo."

-

Vanessa Alves, 17
Estudante do 3º ano da E.E. Brigadeiro Gavião Peixoto

Quando surgiu a proposta de reorganização escolar, Vanessa era presidente do grêmio da Gavião Peixoto, em Perus (zona norte), maior escola da rede estadual da cidade, com cerca de 3.500 matrículas.

Apesar de o plano não prever o fechamento de turmas naquela instituição, a estudante ajudou a mobilizar uma ocupação como estratégia para aumentar a visibilidade da pauta secundarista.

Diferentemente de grande parte de seus colegas, Vanessa já era militante àquela altura. Entrou na Umes (União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo) aos 15, mas deixou a entidade por divergências políticas. Hoje, ela integra o Juntos!, juventude ligada ao PSOL.

"Nas ocupações, a influência maior foi das meninas. De todas as escolas em que fui, quem estava à frente, era mais fluente, ficava mais tempo, eram elas", afirma.

Para a estudante, a ocupação foi um período de avanços nos debates sobre machismo dentro da escola. Mas a comunidade do bairro, por outro lado, não lidou bem com o protagonismo feminino. "Às vezes, tinha que vir um menino conversar com caras que estavam pouco se ferrando para o que eu tinha a dizer, por ser uma menina."

Em casa, Vanessa diz também ter conflitos. "Tive uma grande discussão com meu pai depois de ir a uma manifestação contra o [Eduardo] Cunha. Alguém pichou uma igreja, ele não gostou, e a gente brigou feio", conta. "Mas eu entendo, por conta da idade, por ele ter vindo do interior do Piauí. O acesso à informação era bem diferente."

-

Paula Nunes, 17
aluna do 3º ano da E.E. Alves Cruz

Além de oferecer ensino gratuito de qualidade, o Alves Cruz foi a escolha da família de Paula para seu ensino médio porque tinha período integral, um remédio para preocupações dos pais com a garota "muito ativa", nas palavras da própria estudante.

Mas não resolveu muita coisa. O envolvimento da garota nos atos contra a reorganização escolar deixou sua mãe contrariada. "Tive que pedir ajuda para o meu pai", lembra Paula. "No fim, eles sabiam que se me proibissem, seria pior. Não vou obedecer. O ideal é mais forte."

Nem a ameaça de perder sua maior arma, o celular, assusta: "Se me disserem que vou ficar um mês sem celular se for a a um ato? Toma ele aqui".

-

Yasmin Barranqueiro, 17
estudante do 3º ano do colégio Equipe

Militância política era teoria para Yasmin até 2015. Aluna do Equipe, escola-berço de parte da atual juventude engajada, ela já havia lido muito sobre greves e movimentos sociais.

Acompanhava as notícias sobre as ocupações à distância, até que conheceu duas estudantes da E.E. Alves Cruz num ônibus.

"A prática muda muita coisa na nossa cabeça. Teoria não é tudo. Não adianta ler Marx e discutir o quanto o trabalhador é explorado e não fazer nada", avalia. "Quero me engajar cada vez mais." A militância lhe deu certeza do que quer profissionalmente: ser professora de escola estadual.

O movimento estudantil no Brasil

Publicidade
Publicidade