Galerias de arte se expandem e ocupam de salão de beleza a ateliê de tatuagem

Mulheres desfilam de toalha na cabeça de um lado para o outro. O barulho ensurdecedor dos secadores de cabelo inunda o ambiente, vencido só por berros de uma ou outra cliente que faz escova sem tirar os olhos das obras de arte.

Nas paredes da galeria Recorte, que também funciona como café vegano e salão de beleza, estão colagens que custam até R$ 5.000 —um corte de cabelo ali vale R$ 80.

"Uma galeria de arte dentro do salão poderia ser vista só como decoração, mas a gente tenta ser o mais sério possível em relação a isso", diz Ana Gadelha, dona do espaço na rua Augusta. "Tem muitos modernos que vêm atrás de cortes assimétricos, cabelos coloridos, mas que também vão ao café e de repente começam a frequentar os vernissages, a comprar obras."

Enquanto galerias mais tradicionais, instaladas em imaculados cubos brancos, tentam sobreviver à feroz recessão econômica, um novo circuito de espaços alternativos desponta em São Paulo, cidade com um dos maiores mercados de arte no planeta.

Nanicas, essas novas casas equilibram suas contas não só buscando aluguéis menos estratosféricos em cantos da metrópole fora do eixo Jardins-Vila Madalena, meca das casas já estabelecidas, mas também vendendo toda uma gama de serviços que marchands à moda antiga teriam "nojinho" de misturar com obras de arte milionárias.

Vizinha da Recorte, por exemplo, a True Love abriga bar, loja de design, butique de roupas e ateliê de tatuagem. Enquanto descamisados no fundo do salão servem de tela em branco para a tinta na ponta das agulhas, outros tentam casar o melhor quadro com a melhor luminária, também à venda ali, e até escolher o look da boate —estilistas que dividem o mesmo teto elaboram suas criações pensando na identidade visual de festas em voga no momento.

"Mesmo que não tivesse exposição aqui a gente se sente num ateliê de criação porque os tatuadores também fazem desenhos à mão", diz Edgar de Camargo, fundador do lugar. "É sair da mesmice. Não tem esse clichê da galeria, é uma ambientação menos engessada, um espaço para novos artistas."

No caso, novíssimos, tanto que são desconhecidos das rodinhas "artsy" da cidade.

DIFERENTES PÚBLICOS

Mas enquanto os barbudos e tatuados da True Love lançam apostas, Júlia Morelli, à frente da 55SP, misto de loja de roupas com galeria de arte na Santa Cecília, tenta atrair um público fashionista com peças mais baratas de artistas consagrados. Ela já vendeu trabalhos do artista pop Claudio Tozzi, da concretista Judith Lauand, dos argentinos Julio Le Parc e León Ferrari, além de Montez Magno e do coletivo Chelpa Ferro —todos eles já tiveram mostras de peso em museus pelo mundo.

De preto —as araras de seu espaço priorizam os looks pretos e brancos—, Júlia descreve a natureza mutante da galeria. "Quando não temos nenhuma exposição e a loja está em liquidação, as roupas têm espaço maior", afirma. "É inevitável a pessoa ver uma obra e se voltar para as roupas ou querer uma roupa e gostar de alguma das obras."

Mesmo na Vila Madalena, bairro tradicional do mercado de arte, a Aura, que abriu as portas há poucos meses, também aposta nesse efeito colateral, de uma coisa ajudar a vender a outra, e banca sua operação dividindo o aluguel com uma loja de joias mais descoladas.

Menos híbridas, outras galerias recém-inauguradas seguem uma estratégia distinta. Em vez de vender arte e fazer barba, cabelo e bigode ou brigar com as gigantes por obras mais em conta de seus artistas famosos —na mesma cidade, regras do mercado ditam que um autor só venda suas peças num único endereço—, as novinhas reviram o fundo do baú atrás dos esquecidos pela história e tentam ressuscitar o interesse por eles.

"Todo ano, novos artistas surgem no mercado achando que vão ser a próxima Adriana Varejão", diz Fernando Ferreira de Araújo, que acaba de abrir a minúscula Base, num prédio comercial do Itaim Bibi, zona oeste da cidade. "É como uma eclosão de ovos de tartaruga. Mas há artistas que já têm história, só não têm um mercado, então é mais fácil transformar esses nomes em bola da vez."

Nessa alquimia, vale tudo, até apelar para figuras históricas como Pietro Maria Bardi. A novíssima Face, que ocupa o antigo endereço da Mezanino, galeria que fechou as portas em Pinheiros, tem entre os donos Eugênia Gorini Esmeraldo. Ela trabalhou quase quatro décadas no Masp, idealizado pelo mecenas italiano. Não por acaso, sua seleção de artistas tem nomes como Agostinho Batista de Freitas, pintor naïf relembrado há pouco com uma grande retrospectiva no museu da avenida Paulista.

"Tem muita coisa na arte brasileira que deve ser revista com cuidado", diz Eugênia. "É valorizar os artistas que estão desvalorizados", completa Francisco de Assis, seu marido e sócio no novo espaço. "Queremos reposicionar esses artistas que não estão no seu lugar."

NOVO CIRCUITO

Enquanto isso, outras casas buscam se firmar ocupando brechas inexploradas na geografia da cidade. Janaína Torres, por exemplo, cavou um espaço entre produtoras de cinema dentro de um prédio no limbo entre Pinheiros e Jardins, ou seja, nem lá nem cá no circuito.

Sua estratégia, no entanto, envolve menos malabarismos históricos e mais uma mudança de atitude. "Sou uma pós-galerista. Não sou de família rica nem estudei arte a vida toda, então não tenho aquele estereótipo da galerista nojenta", diz a dona do espaço batizado com seu nome e sobrenome. "Existe uma antipatia nas grandes galerias, e romper com isso faz uma diferença nessa crise."

Longe dos distritos cheios de galerias, a Adelina, em Perdizes, tem uma visão parecida, embora passe ao largo dos perrengues que afligem investidores novatos. Seu dono, Fabio Luchetti, é o todo-poderoso CEO da Porto Seguro, empresa que acaba de reconfigurar quadras inteiras dos Campos Elíseos, no centro, construindo um enorme complexo cultural. Depois da experiência corporativa, Luchetti pensou então num espaço pessoal, ancorado num investimento de mais de R$ 2 milhões usados para renovar dois prédios, um para a galeria e outro com ateliês para seus artistas.

"Não queria uma coisa muito vaidosa", diz Luchetti. "Mas eu me separei, tive de montar outro apartamento e comecei a olhar para essa questão de sair do decorativo para algo que pudesse ter potencial de investimento."

Em escala mais modesta, Bianca Boeckel também foi contra a corrente do circuito estabelecido das galerias da cidade para criar um espaço na Vila Nova Conceição, na zona sul. Sua casinha de esquina, sob a rota dos aviões que decolam de Congonhas, atrai uma clientela mais do bairro, "gente mais conservadora, que não gosta de obras com sexo e palavrões, mas também jovens e gente do mercado financeiro, que está casando ou se separando". "É a única galeria aqui que faz vernissages, eventos", diz a ex-advogada. "É uma casinha intimista e não intimidadora."

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ONDE FICAM

55SP

R. Br. de Tatuí, 195, tel. (11) 98193-3455

Adelina

R. Cardoso de Almeida, 1.285, tel. (11) 3868-0050

Aura

R. Wisard, 397, tel. (11) 3034-3825

Base

Av. Nove de Julho, 5.593/11, tel. (11) 3073-0295

Face

R. Cunha Gago, 208, tel. (11) 3813-7330

Janaína Torres

R. Joaquim Antunes, 177 / 11, tel. (11) 2367-9195

Recorte

R. Augusta, 829, tel. (11) 3368-9824

True Love

R. Augusta, 837, tel. (11) 2094-3383

Vila Nova

R. Domingos Leme, 73, tel. (11) 2691-1190

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