Grito de protesto num terreiro de candomblé: como o bloco Ilê Aiyê virou monumento do Carnaval baiano

Vielas, becos, casas sem revestimento, comércios sem placa. O carro cruza uma sucessão deles até chegar à rua do Curuzu, 228, na Liberdade. O nome não é uma coincidência: estamos em Salvador, no miolo de um dos bairros com maior concentração de negros do Brasil, povoado após a lei que aboliu a escravidão no fim do século 19.

Vermelho, branco, preto, amarelo. Pintada nas quatro cores, a fachada da casa anuncia a Senzala do Barro Preto. Novamente, não se trata de casualidade. Esta é uma das artérias nevrálgicas do coração da Bahia, o estado mais negro do país. Oito em cada dez baianos (81,4%) se autodeclaram pretos ou pardos.

André Frutuoso/Divulgação
Desfile do Ilê Aiyê, bloco afro mais antigo do Brasil, no Carnaval de Salvador
Desfile do Ilê Aiyê, bloco afro mais antigo do Brasil, no Carnaval de Salvador

Aqui fica a sede de uma instituição carnavalesca que transcendeu o Carnaval. O Ilê Aiyê foi criado a poucos metros de distância, em 1974, no terreiro de candomblé Ilê Axé Jitolu, comandado por Mãe Hilda Jitolu. É o bloco afro brasileiro mais antigo da história.

Na época, as grandes agremiações da cidade faziam seleção e não escolhiam negros como seus integrantes —havia uma proibição velada de participarem do circuito.

"Foi um grande grito de protesto", conta Antônio Carlos "Vovô", 66, um dos cinco filhos de Mãe Hilda, falecida em 2009. "O negro só podia sair nos desfiles carregando instrumento ou alegoria da elite branca."

A matriarca já organizava atividades no terreiro, de festas juninas a ligas de futebol de salão, frequentadas pela comunidade do Curuzu, um distrito da Liberdade. Então um jovem office-boy fã do movimento negro americano, Vovô voltava da praia com Apolônio Lima, seu amigo de escola, quando decidiram criar um bloco "só de negão".

"Eu queria botar o nome de Poder Negro, mas podia dar problema", lembra o fundador e presidente da entidade. "Naqueles tempos de ditadura militar, você simplesmente sumia. Qualquer manifestação diferente era chamada de 'coisa de comunista'."

Ilê Aiyê foi, então, adotado. Para Mãe Hilda, o termo significava "a casa de todos".

E, durante um percurso que já dura 45 anos, o bloco virou um monumento nacional.

Hoje, é uma associação cultural que reúne cerca de 3.000 membros, todos negros. É um símbolo da luta contra o racismo. É um patrimônio da cultura baiana. É um marco na reafricanização do Carnaval local.

Também pertence ao Ilê aquele que talvez seja o momento mais emocionante da festa de Salvador : a saída de seus componentes, no sábado, subindo a ladeira do Curuzu.

'O Mais Belo dos Belos', Daniela Mercury

Estilista, filha de Mãe Hilda, a elegante Hildete "Dete" Lima, 65, chefia a oficina que produz os figurinos dos associados. "Sempre fiz rabiscos, penteados... Menina, ficava pensando em roupas e cabelos que poderia criar para as mulheres negras", recorda.

Vermelho, alusão ao sangue derramado; amarelo, à riqueza cultural africana; preto, à pele; branco, à paz desejada. Dete assina indumentárias que incorporam as cores e, por extensão, a ideologia do grupo.

"O Ilê se tornou uma afirmação de tudo que minha mãe falava: 'Vocês são negros, são bonitos e têm que se orgulhar disso'."

Nascido no Curuzu, Sandro Teles, 44, coordenador da ala de canto, tinha avó militante do movimento negro e associada à agremiação.

"Como criança e morador da comunidade, eu via algo gigante crescer. Eram muitas emoções, e a gente sonhava com o Carnaval", lembra o músico, que se inspirava "naqueles homens que tocavam percussão". "Mas, quando alguém entra aqui, percebe que é muito mais que Carnaval."

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E algo gigante cresceu. Atualmente um complexo com oito pavimentos, a Senzala do Barro Preto abriga uma escola voltada à educação infantil e ao ensino fundamental, outra de canto, dança e percussão e uma terceira, profissionalizante. Na leitura de Vovô, a "revolução" não poderia ser só política; precisava ser cultural.

"Aí juntamos as duas coisas com educação, religião e festa", explica ele, que fez curso técnico de engenharia eletromecânica e trabalhou no polo petroquímico da Bahia, em Camaçari.

Sua irmã Dete, figurinista e também educadora, descreve jovens alunos com o mesmo orgulho dedicado aos quatro filhos, que "conseguiram chegar à universidade". "Todos eles conseguiram. Com bastante sacrifício. É gratificante demais pra mim."

Ainda há muita estrada pela frente. Enquanto o carro deixa a sede, porém, fica difícil não mentalizar os versos de Rita Mota, poeta e compositora do bloco, fixados na entrada: "Nosso sonho almejado já deu certo / Eu vi palha com barro virar concreto".

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AGENDA
Ilê Aiyê

Sábado 2/3
21h
Circuito Mãe Hilda - Ladeira do Curuzu, Salvador (BA)

Domingo 3/3
2h
Circuito Osmar - Corredor da Vitória, Salvador (BA)

Segunda 4/3 e terça 5/3
19h
Circuito Osmar - Av. Araújo Pinho, Canela, Salvador (BA)

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QUEM LEVA

New Age
Quatro noites no Salvador Mar Hotel, em quarto duplo, a partir de R$ 508 por pessoa (de 1º a 5/3). Inclui café da manhã, traslados, seguro-viagem e city tour. Sem aéreo.
newage.tur.br; tel. 3138-4888

Decolar
Quatro noites no Américas Towers Hotel, em acomodação dupla, a partir de R$ 3.074 por pessoa (de 1º a 5/3). Inclui aéreo e café da manhã.
decolar.com; tel. 0800-8870248

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A partir de R$ 3.359 por pessoa, em apartamento duplo. Inclui três noites (de 2/3 a 5/3), café da manhã e aéreo.
cvc.com.br; tel. 3003-9282

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