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03/09/2010 - 16h13

Itália em tom menor

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MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA REVISTA sãopaulo

Se a literatura italiana do século 20 foi marcada pela experiência do fascismo, as maiores obras do período são aquelas que assimilam os traumas políticos a uma linguagem feita de elipses e alusões, que não reproduz os acontecimentos, mas prefere esmiuçar seus efeitos sobre a sensibilidade, criando uma escrita apta a descrever novos desastres.

O melhor exemplo é Natalia Ginzburg (1916-1991), autora que escreve em tons menores, mergulhando nas pequenas agonias de personagens cujos conflitos deixam um enorme rastro de sugestão.

Em "Léxico Familiar", publicado no Brasil no ano passado, o dialeto afetivo de um clã de judeus socialistas se contrapunha ao alarido das ruas: a memória era um reduto de resistência silenciosa, um grito surdo em louvor daquilo que se tornou inaudível sob a algaravia fascista.

Com "Caro Michele", estamos num outro momento, que entretanto carrega o efeito silenciador da história. O enredo se passa no início dos anos 1970, momento crítico da frágil democracia italiana, dilacerada entre extremismos de direita e esquerda.

Tais tensões são um longínquo fundo musical, difuso na incomunicabilidade entre Michele e sua mãe, Adriana: ela escreve ao filho, que vive na Inglaterra, mas ele só responde à irmã e a amigos, que compõem um quadro discreto de rivalidades sociais e intelectuais.

A ação avança de maneira indireta nesse romance epistolar entremeado por alguns diálogos, e o acontecimento trágico que reata a esfera privada aos movimentos políticos surge como lapso no quadro de uma violência maior.

"A gente se acostuma com tudo quando não resta mais nada"; "nos consolamos com nada quando não temos mais nada". As frases, ditas por duas personagens, expressam a repetição dolorosa do hábito de sucumbir ao amesquinhamento das relações sociais --e de só viver a felicidade no pretérito.

LIVRO

CARO MICHELE
autora: Natalia Ginzburg
tradução: Homero Freitas de Andrade
editora: Cosac Naify (192 págs., R$ 49)
avaliação: ótimo

conexões

LIVROS

LÉXICO FAMILIAR
Os sofrimentos de uma família de judeus da burguesia italiana remetem à biografia da autora, cujo marido morreu nos cárceres fascistas.
autor: Natalia Ginzburg
tradução: Homero Freitas de Andrade
editora: Cosac Naify (2009, 249 págs., R$ 59)
avaliação: ótimo

FOI ASSIM
O assassinato do marido por uma mulher humilhada é o ponto de partida desse romance sobre a incompreensão afetiva.
autor: Natalia Ginzburg
tradução: Edson Roberto Bogas Garcia
editora: Berlendis & Vertecchia (2001, 112 págs., R$ 34)
avaliação: bom

Rock apresentado em verso e prosa

"A canção é uma poesia ajudada", dizia Fernando Pessoa a propósito da vetusta pergunta sobre o valor das letras de música. Ou seja, a poesia não é menos poética quando composta em simbiose com notas e compassos.

O escritor português não precisou dizer o óbvio: que, para ser ajudada pela canção, a poesia precisa ser poesia. Mas talvez seja necessário dizê-lo aos fãs de Lou Reed que buscarem estro poético em "Atravessar o Fogo", com mais de 300 composições produzidas ao longo de quatro décadas.

Vertidas por dois excelentes tradutores, as letras não têm autonomia em relação a suas performances à frente da banda novaiorquina Velvet Underground. Talvez porque seu objetivo fosse estetizar as vivências de uma geração transgressiva (como na clássica "Heroine"), sem contudo produzir grandes abalos na estrutura da música ou da lírica.

Quando o trinômio sexo, drogas e rock'n'roll não afeta maiores pretensões, pode render boas histórias, como no romance "A Morte de Bunny Munro", do cantor e compositor australiano Nick Cave. Nesse "road movie" etílico, um caixeiro viajante percorre o interior da Inglaterra, levando a tiracolo um filho que testemunha (com o humor negro e a ternura dos desvalidos) as gandaias do pai, o despertar de seus fantasmas e sua corrida contra o tempo.

ATRAVESSAR O FOGO
Lou Reed; tradução de Christian Schwartz e Caetano W. Galindo (Companhia das Letras, 794 págs., R$ 51,50)
avaliação: regular

A MORTE DE BUNNY MUNRO
Nick Cave; tradução de Fabiano de Morais (Record, 352 págs., R$ 49,90)
avaliação: bom

LIVROS

RIBAMAR
José Castello (Bertrand Brasil, 280 págs., R$ 37)
Um ajuste de contas com o fantasma paterno, tendo como sombra a "Carta ao Pai", de Franz Kafka. José Castello embala seu romance numa canção de ninar ouvida na infância: para cada nota, um capítulo. Por trás desse rigor, um rancor: "A filiação, mesmo a mais odiosa, é uma inclusão. Ao persistir no deserto das palavras, me excluo". Um livro perturbador, que mistura gêneros (ficção, autobiografia, metalinguagem) para fazer a anatomia desse espécime esquisito: o escritor.
avaliação: bom

DISCO

SCHUMANN: PIANO CONCERTO/VIOLIN CONCERTO
Martha Argerich, piano; Gidon Kremer, violino (Warner Classics, R$ 36)
Regidos por Nikolaus Harnoncourt, os únicos concertos para piano e violino compostos por Schumann dão diferentes medidas da grandeza do compositor alemão. Se a contida euforia do "Concerto para Piano" parece uma metáfora da vida do músico, atormentado por distúrbios mentais, o menos célebre "Concerto para Violino" intercala, entre o solene primeiro movimento e o "finale", uma melodia em ascensão, que soa como uma despedida infinita.
avaliação: ótimo

FILME

O JARDIM DOS FINZI-CONTINI
Vittorio De Sica (Lume; R$ 39,90)
Os Finzi-Contini, judeus que levam uma vida aristocrática em Ferrara, abrigam amigos perseguidos pela aliança entre fascistas e nazistas, antes que eles mesmos se tornem vítimas da fúria antissemita. O mais melodramático diretor do neo-realismo italiano (aqui na fase do melodrama político de "Girassóis da Rússia"), De Sica nos faz compartilhar da incredulidade dos judeus, que se acreditavam assimilados à sofisticada cultura europeia que os aniquilou.
avaliação: bom

 

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