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01/08/2011 - 20h12

Carnes de caça estão cada vez mais presentes em cardápios de SP

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KATIA CALSAVARA
DE SÃO PAULO

Esqueça aquele tradicional medalhão de filé-mignon. Os cardápios paulistanos estão cada vez mais diversificados quando o ingrediente é carne. Peças de javali, cateto, queixada e capivara estão despertando o interesse dos chefs da cidade, que buscam com as chamadas "carnes de caça" enriquecer o menu com pratos mais raros e difíceis de serem encontrados na concorrência.

Diferentemente de países da Europa, como Itália, Portugal e França, onde a caça é permitida, no Brasil a prática é proibida por lei desde 1965. É por isso que os animais silvestres que comemos vêm de criações autorizadas e fiscalizadas pelo Ibama.

No passado, diante do baixo interesse das cozinhas por essas carnes, os criadores não investiam nesses tipos de animais, o que criava um círculo vicioso. Para um chef, incluir um prato no menu, conquistar os clientes e depois suspendê-lo por falta de matéria-prima é algo que pode comprometer a fama do restaurante.

De 2007 para cá, a história é outra. Com a agitação gastronômica que toma conta de São Paulo desde meados dos anos 2000 --fenômeno que tem tudo a ver com o crescimento do país--, os chefs aumentaram a procura por carnes exóticas, o que fez com que fornecedores cobrassem maior regularidade de quem cria animais silvestres. O resultado: temos agora mais opões para ousar na hora de escolher o jantar.

Cisco Vasques/Divulgação
O chef Henrique Fogaça, do Sal, no bar Z Carniceria
O chef Henrique Fogaça, do Sal, no bar Z Carniceria

Mercado em expansão

Com um nome um tanto inusitado, o açougue Porco Feliz, no Mercado Municipal, é um dos principais distribuidores de carnes de caça na cidade. De acordo com as contas do estabelecimento, em 2009 foram vendidas cerca de 12 toneladas de carnes desse tipo. Em 2010, o número subiu para 15 toneladas. E a tendência de alta deve ser mantida: só até julho já foram comercializadas quase 10 toneladas.

"O javali é o mais vendido. Mas também saem capivaras, queixadas, catetos... Aos poucos, as pessoas estão ficando mais abertas a experimentar carnes diferentes", diz o gerente administrativo do local, Ademir Rodrigues Filho.

Com mais carnes disponíveis, mais concorrentes e clientes ávidos, restou aos chefs estudar o que fazer com esses ingredientes. Para Rodrigo Oliveira, do badalado Mocotó, investir nas carnes de caça é um reflexo das constantes mudanças no mercado gastronômico. "As pessoas procuram novidades, e inovar faz parte do nosso trabalho", conta ele. "Hoje você consegue comprar essas carnes com mais facilidade, o que era raro antigamente", completa o chef Diogo Silveira, do Pomodori.

Justamente por ser a mais conhecida do paladar brasileiro, a carne de javali é a mais presente nos menus. Casas como D.O.M., Friccó, Eñe, Due Cuochi Cucina e Diaccuí já têm o ingrediente fixo no cardápio. Isso sem falar nas churrascarias e nas linguicinhas que alegram as pizzas de casas como Bráz, Speranza e 1900.

A marca Temra, especializada nesse animal, com sede em Araçariguama (SP), está entre as principais distribuidoras da carne no país. O engenheiro agrônomo André Fleury Alvarenga, um dos sócios, conta que a produção atual chega a 3,5 toneladas por mês.

"A marca existe há 15 anos, mas há cerca de quatro anos podemos dizer que conseguimos manter uma produção regular e de acordo com a demanda. O grande desafio era conseguir produzir mensalmente para sustentar o mercado", afirma. Ele conta que foi necessário estudar intensamente toda a cadeia de produção do animal, que é acompanhada por zootecnistas e veterinários.

Além de trabalhar com o javali, a Cerrado Carnes de Caça, de Cotia (SP), fornece animais como capivara, cateto, queixada, paca e faisão. Quem comanda a empreitada é Gonzalo Barquero, muito elogiado pelo diálogo frequente e direto com os chefs. Segundo ele, somente a partir de 2009 é que as carnes passaram a ser fornecidas regularmente.

"Nós garantimos a compra dos animais junto a produtores em todo o Brasil. De 2010 para 2011, já crescemos 250%", conta Barquero, que atualmente abastece o mercado com cerca de 1 tonelada de carnes de caça por mês, a maior parte para São Paulo. "Já podemos produzir 3 toneladas por mês, mas estamos indo aos poucos, para não perder qualidade no meio do caminho."

Desde pequeno, Barquero é apaixonado pelo campo. Sua família, natural da Costa Rica, tinha um sítio em Jundiaí (SP), onde cuidava da criação de gado e cavalos. Aos poucos, os parentes foram abandonando o negócio, e Barquero tomou as rédeas. "Ninguém conhecia bem o assunto", fala ele, que visita seus mais de 30 produtores em Estados como Goiás, Rio, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Desafios à mesa

Para chegar a bons resultados, os chefs suam os aventais. São necessários vários estudos até atingir o tempero e a combinação ideal de complementos. Henrique Fogaça, do Sal Gastronomia, conta que testou várias formas até pegar o jeito de fazer a carne de javali. "Fiz na pressão, assada, marinada... Foram muitas etapas até chegarmos ao ragu que oferecemos hoje. Como ela não tem muita gordura, é preciso técnica para não ficar seca demais", diz.

Para ajudar a popularizar a carne entre os clientes, Fogaça oferece uma pasta de javali no couvert. Ele usa 15 kg do animal em 15 dias, contra 25 kg de carne vermelha convencional semanalmente.

Uma outra forma de apresentar essas carnes aos clientes é realizar festivais. Foi o que fez o chef Ivo Lopes, do Due Cuochi Cucina. Depois de voltar de uma viagem à Itália, ele aproveitou o inverno para investir nessas iguarias. Em julho, o restaurante promoveu um festival com cateto, faisão e javali -este entrou de vez para o cardápio da casa.

"Cada espécie tem sua personalidade. O sabor em geral é forte, mas acredito que o público está mudando e perdendo o preconceito", afirma. Lopes explica que os cortes mais usados (pernis, carrés, stincos, costelas, paletas e filés) já chegam ao restaurante devidamente cortados de acordo com o pedido, congelados e embalados à vácuo.

Investir na queixada será o próximo desafio do chef do Mocotó. Nos últimos meses, ele se dedicou a vários testes com cateto e queixada e, a partir de meados de agosto, esta última fará parte do menu fixo. "Gostei muito das duas, mas resolvi ficar com a queixada. Um dos cortes dos quais mais gostei foi a paleta, que iremos rechear aqui", diz Rodrigo.

Já Patrícia Hadlich Miguel, nutricionista e proprietária do restaurante Diaccuí, em Moema, trabalha com capivaras, queixadas, catetos e javalis há cinco anos. A família dela tem uma pequena criação de capivaras em Miracatu (SP), que ajuda a abastecer o restaurante. "As pessoas só não consomem mais por falta de conhecimento. Algumas das carnes são um pouco secas e o desafio é deixá-las macias sem tirar o sabor."

Nascido na região Centro-Oeste, Diogo Silveira, do Pomodori, ressalta a importância de os animais serem criados em áreas grandes, próximas do ambiente selvagem em que vivem. "Isso garante uma carne saudável e com menos gordura", diz. O chef do Mocotó concorda: "O ambiente e a forma como esses animais são criados são importantes para garantir a qualidade da carne".

Talvez ainda leve mais tempo para que as carnes de caça firmem seu espaço nas receitas, mas os paulistanos já se mostram mais interessados em prová-las. "Essas carnes passaram a existir mais no repertório do brasileiro. Codornas, perdizes e coelhos [considerados animais domésticos], já são bem mais aceitos", diz a chef Marie-France Enry, do La Casserole, que desde os anos 1950 oferece pratos com coelho. "Os chefs fazem um trabalho fundamental para difundir outros tipos de carne", completa. E, no que depender deles, nossos bifinhos nunca mais serão os mesmos.

QUEM É QUEM

Javali
Ancestral do porco doméstico, ele tem carne magra, tenra e com baixo teor de gordura e colesterol
Preço por kg: cerca de R$ 38

Cateto
Espécie de porco-do-mato. Tem carne magra e sabor semelhante ao da carne de porco, porém menos gordurosa e levemente adocicada
Preço por kg: cerca de R$ 78

Queixada
Esse porco selvagem tem carne vermelha escura, com baixo teor de gordura e muito saborosa
Preço por kg: cerca de R$ 78

Paca
Roedor de hábitos noturnos, tem carne rosada e se parece com um porco jovem. Devido à dificuldade de criação, é bastante cara
Preço por kg: R$ 270 (vendido em peça, com cerca de 4 a 5 kg)

Capivara
Maior roedor do mundo, reproduz-se com facilidade. Sua carne tem textura macia, é rica em proteínas e tem sabor delicado
Preço por kg: cerca de R$ 78

Faisão
De origem asiática, suas plumas também são muito procuradas. Sua carne é considerada saborosa, apesar de seca
Preço por kg: cerca de R$ 78

Fontes: "Carne & Cia" (Senac Editora), Cerrado Carnes de Caça, açougue Porco Feliz e chef Ivo Lopes

As regras para quem cria

Como forma de preservar espécies e reduzir a caça ilegal, os criatórios de animais selvagens devem seguir as regulamentações do Ibama, que, além de fiscalizar, determina condições de criação, manejo e reprodução dos animais. Restaurantes e varejo devem trabalhar somente com produtores registrados no órgão. No Estado de São Paulo, segundo o Ibama, hoje existem 22 criadouros autorizados de javalis, catetos, queixadas, pacas, capivaras e animais do tipo.

SABORES ANTIGOS
JOSIMAR MELO, crítico da Folha

Em diferentes pontos do Brasil, javalis destroem criações, capivaras invadem plantações, jacarés espreitam vidas humanas. Mas o equilíbrio entre as espécies não pode, por lei, ser regulado pela caça.

Marrecos em migração também podem causar prejuízo nos arrozais de Mato Grosso. Não chegam a fazê-lo porque os produtores os espantam... a tiros. Que abatem algumas aves.
O peito desses marrecos, com que fui presenteado certa vez, foi das iguarias mais deliciosas que já comi no Brasil. Me fez lembrar pombos ou perdizes servidos na Europa na época da caça. Sabor que a carne "de caça" que temos no Brasil lembra apenas muito de longe.

Sempre é bom, para o paladar e para a cultura, conhecer a variedade de alimentos que a vida animal fornece à nossa espécie (e a outras). De criação ou não, todos deveriam provar a carne de tartaruga, de paca, de jacaré. Mas se alguém achar que são "de caça", não são.

Não sinto prazer nenhum em caçar nem em pescar. Matar não é meu esporte, e dele fui liberado pela divisão social do trabalho na nossa espécie. Mas sem dúvida me sinto mais próximo das origens sentindo o sabor da carne realmente silvestre, criada na natureza, do que da ração dos animais domesticados.

Em muitos países, as espécies são preservadas graças à regulamentação da caça, que de quebra ainda salva os sabores antigos.

 

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