Quando as novas tecnologias fazem bem para a saúde e para a economia

Pesquisa voltada aos direitos da sociedade impulsiona desenvolvimento do país, defende especialista

Iara Biderman
São Paulo

Manter um sistema universal de saúde no século 21 exige mais que prevenção, detecção e tratamento de doenças. 

É preciso investir em inovação e tecnologia próprias, para garantir abastecimento de medicamentos e diminuir os custos da judicialização. 

A tecnologia de ponta é hoje indispensável não apenas para doenças de alta complexidade mas também para o atendimento básico, segundo o economista e pesquisador da Fiocruz Carlos Gadelha. 

Paciente realiza tratamento de radioterapia com acelerador linear no Hospital A.C. Camargo, em São Paulo - Lalo de Almeida/Folhapress

Acesso ao big data (grande volume de informação em tempo real), por exemplo, é o que garante uma política de atenção primária resolutiva. 

A identificação precisa de vírus transmitidos por um mesmo vetor, como dengue, zika e chikungunya, também é possível apenas com o uso de técnicas avançadas. 

Em um sistema que oferece saúde a todos, dá para abastecer pesquisadores com um panorama amplo de dados populacionais, facilitando novas pesquisas e descobertas. 

Foi essa dobradinha que permitiu o maior estudo de genômica do zika nas Américas, em quantidade de amostras analisadas, e a descoberta da relação entre o vírus e a microcefalia em bebês. 

Para o grande estudo, pequenos pedaços do genoma do zika foram copiados e ampliados inúmeras vezes no laboratório, até poderem ser observados a olho nu. 

O grande passo foi poder aplicar a tecnologia na rede pública, segundo Rafael França, pesquisador da Fiocruz que participou do laboratório de referência em arbovírus da Fiocruz Recife.

São exemplos de inovação que não estão ligados diretamente à criação de um novo produto ou tratamento, mas que fazem a diferença nas políticas de controle e combate a doenças. 

Investir em pesquisa básica e produção de conhecimento é parte do processo de inovação e oferece caminhos para a solução de problemas da saúde pública, segundo França. 

Além disso, só é possível desenvolver produtos inovadores com custo acessível se há um mercado pronto para consumir em larga escala —e esse mercado é a saúde pública. 

“Para erradicar doenças, é preciso vacinas de última geração e imunização em massa. Não dá para produzir isso de forma artesanal em centros de pesquisas, é preciso adquirir tecnologia para produção em escala industrial”, diz Gadelha. 

A incorporação de tratamentos de alta complexidade também se tornou vital para a sustentabilidade do sistema em um país que vê crescer a expectativa de vida e a população mais velha. 

Biofármacos de última geração para tratamento do câncer podem custar, para um paciente individual, mais de R$ 1 milhão por ano, tornando-os acessíveis apenas para uma faixa da população que não ultrapassa 1% do país. 

“É preciso domar a fera da inovação para que ela chegue à sociedade”, diz Gadelha. 

Para isso, o economista afirma ser preciso combinar modelos empresariais e de inovação ao direito básico de acesso à saúde. 

Um elemento desse modelo passa por revisão do sistema de propriedade intelectual, criado quando o processo de inovação era mais lento. 

“No nosso século, manter uma patente por 20 anos é uma eternidade. Rompe o pacto histórico entre a proteção dos direitos do inventor e os benefícios à sociedade”, diz Gadelha, acrescentando que 60% das patentes mundiais de biofármacos estão nas mãos de 15 empresas. 

A solução não é derrubar patentes compulsoriamente, mas evitar que o direito à propriedade intelectual se torne uma questão de monopólios. 

“Criar mais competitividade faz bem para a inovação e para a sustentabilidade do sistema”, afirma Gadelha.

Há cerca de uma década o país tem estabelecido parcerias com empresas para transferência de tecnologia e produção de conhecimento. “A ideia é deixar de trabalhar para pouca gente com alto lucro e trabalhar com grandes quantidades”, diz o economista. 

Mas a política para fomentar a aquisição de tecnologia para a produção em grande escala de novos medicamentos ou testes ainda é muito falha no Brasil, segundo Rafael França. 

“O Governo gasta R$ 250 milhões para comprar de empresas estrangeiras kits para testes de doenças endêmicas nacionais. Esse mesmo valor poderia ser investido aqui para construir ou ampliar uma planta farmacêutica capaz de produzir os mesmos kits e abastecer o sistema”, diz o pesquisador.

Neste caso, o investimento em tecnologia caminharia ao lado do desenvolvimento econômico. “Uma fábrica nacional garante o abastecimento do sistema e gera empregos. E, no médio prazo, permite que o país passe de importador a exportador de produtos farmacêuticos”, avalia França.

Gadelha defende uma reforma da política econômica e de saúde que supere a lógica de setor. “Antes de atender à indústria farmacêutica, a inovação deve atender a sociedade”, afirma o pesquisador.

A agenda de inovação em saúde tem sido míope, de acordo com o economista. Os investimentos estão voltados para melhorias superficiais, como formatos de comprimidos ou uma pequena diminuição dos efeitos colaterais. 

“Há investimento para melhorar um padrão tecnológico já existente, enquanto as inovações em áreas como saúde mental, dor ou envelhecimento ainda são precárias”, afirma.

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