Agravamento da pobreza coloca menores em risco na pandemia

Interrupção de serviços sociais e da escola contribuem para a exploração

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São Paulo

Abuso e exploração sexual, trabalho infantil, negligência. Quando se pensa em uma epidemia, não são essas as ameaças que vêm à mente.

Enquanto a atenção do governo e da sociedade mira o combate à doença, crianças e adolescentes se tornam vítimas indiretas e invisíveis do contexto de exceção.

Foi o que ocorreu com o surto de ebola, na África Ocidental, entre 2014 e 2016. Nesse período, houve um pico dos registros desses crimes na região associado ao isolamento e à interrupção de serviços sociais, segundo a Unicef.

A preocupação é que o mesmo se repita com a pandemia do coronavírus. Alertas quanto aos riscos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes já foram emitidos por organizações tão diferentes quanto a ONU e o FBI.

ilustração da Luiza Pannunzio mostra um menino nu que está sendo tocado no queixo por uma mão gigante
Luiza Pannunzio

A exploração sexual —quando há algum tipo de compensação pelo ato, como dinheiro ou comida— requer especial atenção no contexto atual de aumento do desemprego e queda na renda das famílias, afirma Luciana Temer, diretora do Instituto Liberta, que combate esse crime.

“A condição socioeconômica agravada da família gera maior possibilidade de exploração sexual. Numa situação de famílias ou meninas em necessidade, pode projetar um aumento desse crime”, afirma.

A advogada Thaís Dantas, do Instituto Alana, de defesa da criança, também aponta a piora da desigualdade social em virtude da pandemia como um fator para a exploração sexual de menores. “Como as projeções são de que a desigualdade e a extrema pobreza se agravem, o cenário é preocupante”, diz.

A previsão pós-pandemia é de crescimento do trabalho infantil, diz Maurício Cunha, secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A pasta, em conjunto com os ministérios da Justiça e Cidadania, planeja ações de prevenção e erradicação do trabalho infantil.

A delegada Joyce Viana, de Manaus, conta que, em um caso recente, os exploradores espelhavam um serviço de delivery de comida, no qual as adolescentes eram oferecidas em um “cardápio”. As vítimas relataram necessitar dinheiro para a compra de gás de cozinha e remédios.

O combate a casos como esse já é difícil em tempos normais, diz a delegada, pois as denúncias são raras e as vítimas não se reconhecem como tais, resultado da situação de extrema vulnerabilidade em que vivem e da falta de informação.

Essa dinâmica faz com que a vítima geralmente negue o crime, o que exige da polícia um trabalho de investigação para provar a exploração. A pandemia, no entanto, dificultou esse esforço.

“Temos recebido inúmeras denúncias, mas não estamos tendo como atuar de maneira satisfatória. A segurança pública como linha de frente no combate ao vírus está tendo muitas baixas de pessoas doentes. Estamos conseguindo fazer o trabalho apenas em flagrantes”, diz Viana.

A disrupção da rede de atendimento às vítimas é outro fator que dificulta o combate ao crime na conjuntura atual, afirma Karina Figueiredo, coordenadora do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes.

Os serviços de saúde, segundo ela, desempenham um papel importante de atendimento a vítimas e identificação dos casos suspeitos. Com a pandemia, porém, esses espaços estão sobrecarregados.
Outro importante espaço de acolhimento fechado é a escola, não só por afastar possíveis vítimas do aliciamento, como também por ajudar a monitorar casos de risco.

Na tentativa de acompanhar as crianças mesmo à distância, o site do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (Naapa) oferece atendimento a estudantes da rede municipal de São Paulo realizado por psicólogos e psicopedagogos. Pela página, é possível também fazer denúncias.

Embora o fato de as mães estarem presentes em casa possa ser visto como um inibidor do abuso e da exploração, muitas vezes essas mulheres são elas próprias vítimas de violência. “O que temos hoje é uma rede de apoio muito fragilizada, e esses casos não estão chegando a ela. A criança não tem onde ou como pedir socorro”, resume Itamar Gonçalves, gerente da Childhood Brasil, que atua no combate à violência sexual infantil.

Oferecer canais de denúncia é a principal estratégia governamental de combate à violência contra crianças na conjuntura atual, como o Disque 100 e o aplicativo Direitos Humanos Brasil.

Esses caminhos, no entanto, não são de fácil acesso, critica Figueiredo. “Uma criança hoje teria muita dificuldade de denunciar via Disque 100, a linguagem é rebuscada.” Temer aponta ainda a falta de privacidade nas casas para a vítima se sentir segura para telefonar. Em relação ao aplicativo, além da necessidade de um celular, ele exige o fornecimento de um CPF para cadastro.

Um caminho apontado tanto por ativistas quanto pelo governo é o incentivo para que vizinhos e pessoas próximas denunciem. Cunha diz que o ministério está lançando uma campanha com esse fim.

Essas iniciativas miram principalmente o combate ao crime de abuso sexual. Já a exploração, por envolver uma troca e aparente consentimento da vítima, acaba sendo mais socialmente aceita.

Conselheiros tutelares de São Paulo entrevistados pela Folha relataram raramente receber denúncias de exploração sexual. “As adolescentes entendem que conseguem se organizar dessa forma, muitas têm filhos e acham que esse é um caminho. Elas não identificam a violência, nós temos que apontar”, diz.

Elisângela Lima Dias, conselheira tutelar da Brasilândia, um dos bairros com mais mortes por Covid-19.
A exploração sexual pela internet é uma preocupação central. Com a ampliação do tempo em que crianças e adolescentes ficam online na quarentena, aumenta também a sua vulnerabilidade.

“A gente sabe que o Brasil infelizmente se tornou um exportador de imagens [de abuso sexual infantil]”, afirma Cunha, da secretaria nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Uma tática comum de criminosos é aproximar-se da vítima como se fosse outra criança, pedindo fotos de conteúdo sexual. De posse desse material, passam a chantageá-la, ameaçando divulgar a imagem para seus familiares.

Com isso, têm controle sobre a vítima, pressionando-a por mais fotos e vídeos sexualmente explícitos.
O número de denúncias de exploração sexual infantil virtual saltou 106% em março em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo a ONG americana Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas.

Questionada pela Folha sobre a atividade de pedófilos na internet durante a pandemia, a Polícia Federal, por meio de sua assessoria de imprensa, diz que tanto o uso de redes P2P (de compartilhamentos de arquivos) quanto relatórios de provedores (Facebook, Instagram, Google, Microsoft etc) aumentaram.
“Não foi um incremento grande, mas aconteceu.”

A exploração sexual online se diferencia também por atingir vítimas de todas as classes sociais. “Uma menina cai em uma armadilha e começa a ser chantageada para oferecer mais material pornográfico. Essa forma de exploração sexual começa a migrar de uma realidade que é só de alta vulnerabilidade para uma de qualquer criança exposta a mídias sociais sem uma orientação”, diz Temer.


Sinais de que algo pode estar errado com a criança

  • Alteração brusca de comportamento - tristeza, agressividade, vergonha excessiva, pânico
  • Silêncio inusual - muitas vezes, o abusador faz chantagem para não ser denunciado
  • Marcas físicas
  • Doenças psicossomáticas
  • Queda no desempenho escolar
  • Mania de limpeza - excesso de banho, compra compulsiva de produtos de higiene

500 mil é a estimativa de meninas e meninos vítimas de exploração sexual no Brasil

82% das vítimas de estupro são do sexo feminino —maioria negras e jovens

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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