Dependência química deveria ser enfrentada com ampliação no SUS, dizem especialistas

Webinário da Folha debateu impactos da ação policial e da legalização na política sobre drogas

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São Paulo e Brasília

O sistema público de saúde poderia ser um trunfo do Brasil no tratamento de dependência de substâncias ilegais, caso melhor aproveitado. O diagnóstico foi feito por profissionais ouvidos durante o seminário virtual Estado alterado, realizado pela Folha nesta quinta-feira (1º) para debater tratamento e combate ao tráfico de drogas.

“A atenção primária é onde o indivíduo acessa o sistema de saúde. Não é possível que a gente não tenha um programa para álcool e drogas, para fazer a triagem e impedir que as pessoas caminhem para a dependência”, aponta Ana Cecília Petta Marques, atual coordenadora da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria.

Apesar de não existir um único tipo de tratamento no país, tem crescido o consenso de que a redução de danos é um bom caminho.

“É uma ética de cuidados baseada em cada indivíduo”, diz a antropóloga Roberta Costa. “Uma coisa que funciona como cuidado para determinada pessoa pode ser uma agressão para outra.”

Marques acrescenta que o tipo de intervenção feita —seja redução de danos, abstinência ou internação— muda conforme o paciente e por isso depende de um bom diagnóstico, que leve em conta o contexto no qual a pessoa está inserida. Ela sugere o levantamento das necessidades dos dependentes para traçar um perfil e delinear a resposta que será mais efetiva.

Hoje, o principal braço do SUS (Sistema Único de Saúde) para a questão são os CAPS AD ( Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), estruturas comunitárias que atendem os dependentes químicos.

Apesar de centrais, no entanto, os especialistas avaliam que eles não são suficientes se dissociados de outras ações públicas, como o cuidado integrado dos dependentes e a mudança da abordagem policial em áreas de consumo de drogas.

A confluência de políticas para drogas pode ser vista na Cracolândia, no centro de São Paulo.

O atual programa para a área é o Redenção, desenvolvido no início da gestão João Dória na prefeitura (2017), após desmobilizar o Braços Abertos, do governo de Fernando Haddad. Nenhum deles obteve os resultados almejados.

Coordenador do programa, o psiquiatra Arthur Guerra, explica que a ideia é uma abordagem híbrida: o paciente pode tanto trabalhar com a abstinência em hospitais psiquiátricos quanto buscar um CAPS AD, focado na redução de danos.

Mas as vagas para internação vêm escasseando, tendo passado de 300 para 70 porque, segundo Guerra, o CAPS traz resultados mais eficientes.

Roberta Campos, que também é ativista do coletivo Craco Resiste, aponta como obstáculo as recorrentes ações da Guarda Civil Metropolitana (GCM) na região.

Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o coletivo tem monitorado a quantidade de munição utilizada na Cracolândia. De 18 de julho a 1º de agosto, segundo respostas da Secretaria Municipal de Segurança Pública encaminhadas à Folha, foram pelo menos 105 balas de borracha e 40 bombas de efeito moral foram empregadas.

Para a antropóloga, as ações são um empecilho ao tratamento dos dependentes e têm se mostrado ineficientes no decorrer dos anos. “A violência piora muito a possibilidade de recuperação”, diz.

Arthur Guerra rebate as críticas, predindo nuances: “Dá a impressão de que os policiais, militares ou civis, são mal treinados, que são pessoas maldosas, que não seguem protocolos.”

Um outro caminho abordado no debate foi a legalização das drogas. Os profissionais concordam sobre a necessidade de estudar a questão, mas discordam quanto ao momento certo de pôr a medida em prática.

Para Ana Cecília Marque, a legalização hoje teria impacto grave. "Só quando uma política de drogas moderna estiver em ação, a gente pode discutir essa questão. Neste momento, não temos essa estrutura."

Guerra concorda que o país não está preparado, mas lembra que o mundo caminha nesse sentido. “Acho que precisamos ter cuidado e trabalhar nos estudos científicos.”

Para Roberta Campos, a legalização é uma importante ferramenta para afastar a pauta do cunho policial e ampliar o acesso à informação sobre as substâncias, uma vez que, se legalizadas, elas poderiam ser mais pesquisadas e estudadas.

Ilona Szabó, colunista da Folha e diretora-executiva do Instituto Igarapé, ressalta que o debate sobre uma política de drogas está interditado pelos políticos, com consequências para parte da população, mais afetada pela abordagem punitivista. “Quem paga o preço são os jovens negros”, afirma.

O tráfico de drogas é a segunda tipificação penal mais recorrente no país (25%), atrás somente do roubo (28%). Entre os presos, 30% têm entre 18 e 24 anos e 23% entre 25 e 29 anos. ​

Segundo o relatório do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, publicado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a população carcerária brasileira é composta por 884.863 pessoas, mais do que o dobro do número de vagas disponíveis no sistema prisional. Destes, 54% são negros.

O norte atual no país é a Lei de Drogas, de 2006, que prescreve medidas para prevenção de uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes. Prevê também normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico.

Plantio, cultura, colheita e exploração são proibidos, podendo a União autorizar o uso exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização.

Szabó afirma que, embora tenha sido vista como um avanço na época por acabar com a prisão de usuários, a lei tem lacunas. A especialista critica o fato de o porte para consumo ter permanecido na esfera criminal e a ausência de critérios para diferenciar traficantes de usuários.

“A tipificação dos crimes de tráfico dificultou a aplicação de penas alternativas para réus primários, pessoas que não são uma ameaça à sociedade", diz. "A lei não permite que essa gradação seja feita da forma adequada. Na prática, significou um aumento do encarceramento.”

A cientista social Nathália Oliveira, cofundadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, defende levar o tema para a esfera municipal. “A saúde e a assistência social não dialogam com o sistema de Justiça, porque uma rede fica vinculada ao município e a outra ao estado", critica.

Ela chama atenção ainda para a importância de pais e educadores abordarem o tema, com responsabilidade e linguagem adequada, mostrando riscos e danos para crianças e adolescentes em fase de desenvolvimento. “Mentir para crianças e adolescentes não é o caminho, porque eles perdem o vínculo de confiança nesse adulto”, afirma.

“Para a prevenção, a primeira questão é sempre passar informações corretas, os riscos e as consequências. É preciso falar com verdade, porque eles podem olhar na internet”, complementa Szabó.

A diretora-executiva do Instituto Igarapé diz que a lei antidrogas, como está posta, beneficia o crime organizado, e que a abordagem escolhida para lidar com as drogas no Brasil consome recursos que poderiam ser direcionados para combater crimes violentos ou casos de corrupção.

“Prender não é a única forma de punir. Além de ser caro, essas pessoas depois ficam marcadas e servem de mão de obra para o trabalho organizado”, diz.​

O seminário Estado Alterado foi mediado pela jornalista Paula Leite, idealizadora da série de reportagens de mesmo nome que a Folha vem publicando semanalmente para mostrar a diversidade de política de drogas pelo mundo, apoiado por financiamento da Open Society Foundations.


Assista ao vídeo do debate:


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