Cuidados paliativos oferecem qualidade de vida a pacientes sem perspectiva de cura

Atenção busca dar autonomia e bem-estar contínuo ao doente e a sua família

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São Paulo

Antes de pesquisar sobre cuidados paliativos, Diego Henriques ouvia o termo com receio. Uma amiga enfermeira chegou a comentar que era um recurso para pessoas na faixa dos 90 anos.

Aos 29, convivendo com um câncer de testículo metastático, não tem pudor de rebater quando dizem que não tem perfil de paliativo. “Foi o presente de que precisava para poder encaminhar outras áreas da minha vida.”

Ao saber das metástases, passou uma semana trancado no quarto. Era abril de 2019, cerca de dois anos após o diagnóstico inicial e um extenso protocolo de quimioterapia e cirurgias. Novos tratamentos não compensariam os danos à qualidade de vida.

“Eu estava cansado daquela rotina pesada”, diz ele, que percorria com frequência os 110 km de Fernandópolis, onde mora, até o hospital, em São José do Rio Preto.

Os cuidados paliativos vieram como uma promessa de tranquilidade. Eles são uma abordagem multidisciplinar, que prioriza o bem-estar do paciente —físico, emocional, social e espiritual. “O foco não seria a doença, mas sim, eu”, resume Diego.

Maria Goretti Maciel, diretora-técnica do serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo, explica que não se trata de um recurso só para o fim da vida, nem limita outros tratamentos.

Idealmente, a abordagem paliativa deve estar presentes em todos os níveis de assistência, desde o diagnóstico. “O início precoce do cuidado paliativo traz uma diferença enorme na qualidade de vida e no uso de recursos.”

A médica destaca que o paliativista deve ter um conhecimento especial em farmacologia, sobretudo na administração da morfina e de outros opioides para a dor. “O perigo é usar mal e acontecer como nos EUA, que banalizaram o uso do medicamento.”

Com o encaminhamento paliativo, Diego conseguiu amenizar as dores e aprendeu a lidar com a doença, tomando ele próprio as decisões sobre seu tratamento.

Por recomendação médica, deixou o trabalho de professor da rede municipal. “Aos 26, eu tinha medo de morrer, porque no fundo tinha consciência de que não vivia, só trabalhava. Agora não tenho mais, porque estou vivendo.”

Foi online que ele descobriu na Casa Paliativa um novo espaço para compartilhar sua experiência. O projeto é uma extensão da Casa do Cuidar, organização que atua na formação e no conhecimento sobre cuidados paliativos.

Os encontros voltados para pacientes ocorrem sob a supervisão da geriatra e paliativista Ana Claudia Arantes, do psicólogo Rodrigo Luz e da jornalista e paciente de câncer de mama metastático Ana Michelle Soares.

O plano era promover reuniões presenciais no espaço a ser inaugurado na capital paulista, mas, com a pandemia, o programa entrou no ar em abril deste ano, totalmente online.

Nas aulas abertas da Casa Paliativa, Elaine Cristina Valente, 45, encontrou o acolhimento e a direção que faltavam para ela e seu pai, Antônio, 81, ambos pacientes de câncer metastático.

Em 2015 o pai descobriu um adenocarcinoma no reto e, no ano seguinte, Valente recebeu o diagnóstico de câncer de mama, justo na ocasião em que Antônio passava por uma cirurgia complicada. Em 2019, quando se achava curada, descobriu tumores na coluna.

“O que intensifica o sofrimento é a resistência em manter as mesmas expectativas de outros tempos e que, muitas vezes, não cabem mais no presente”, diz ela, que mora com os pais e tem uma filha de 14 anos em Adamantina, a 578 km de São Paulo..

Antônio já passou por mais de 60 aplicações quimioterápicas e Elaine, atualmente, faz o tratamento por via oral. Mas a clínica deles não oferece uma equipe de paliativistas. “A gente vai se adequando conforme os imprevistos buscando orientações e especialistas”, conta.

Com a Casa Paliativa, ela aprende a lidar com suas ansiedades e a estender essa preocupação para o seu pai, frisando que a terapia curativa não pode normalizar a dor e a depressão. “Continuamos vivendo com uma esperança por dia, sem deixar de sonhar com o amanhã.”

Segundo levantamento da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), o Brasil tem apenas 191 serviços de cuidados paliativos registrados. São ao todo 789 leitos, 58% deles no Sudeste. A região mais deficitária é a Norte, com 23 leitos ao todo, no Acre e no Pará.

André Junqueira, presidente da ANCP, identifica a raiz do problema na falta de educação dentro das graduações de medicina e enfermagem – que não incluem os cuidados paliativos como uma disciplina –, além da falta de políticas públicas nacionais.

“Para oferecer isso, não precisaríamos de hospitais de alto padrão, mas de incorporar essa visão dentro da matriz do SUS”, diz Junqueira.

Para ele, o ideal seria que a capacitação começasse nas equipes de saúde da família, para promover esse cuidado desde a base.

Mas nunca é tarde para essa atenção entrar na vida de um paciente. Para quem não consegue manter mais a rotina difícil nos hospitais, os cuidados paliativos também podem oferecer atendimento domiciliar.

Essa assistência foi estendida a Ciro Marcondes Filho, 72, depois de ter ficado isolado por 12 dias em um quarto de enfermaria devido à Covid-19, em agosto.

Conversando com a Folha, Ciro relembrou o período como “traumático em todos os sentidos”. Ele, que descobriu um câncer de próstata com metástase na coluna no final de 2019, afirmou que não queria mais entrar em um hospital.

Na ocasião, a médica fez um pedido especial ao professor da Escola de Comunicação e Artes da USP: uma aula de teoria da comunicação para sete residentes de cuidados paliativos. Concordou e, como presente, ganhou um chocolate e tirou fotos com os estudantes.

Surpreso com o tipo de assistência humanizada que só descobriu nos últimos meses, prometeu a eles escrever um ensaio sobre cuidados paliativos, que constatou faltarem “em toda parte da medicina”. A impessoalidade dos tratamentos mata, constatou.

A partir de então, passaria a receber os médicos e enfermeiras para a realização de exames de sangue, urina e administração de medicamentos. “Vieram na hora certa. Não sei se teria aguentado sozinha”, comenta a mulher do professor, Márcia Pereira Marcondes, 57.

Autor de vários livros sobre comunicação, Marcondes sentia falta de um atendimento especializado para conversar a fundo sobre a finitude e questões existenciais que os problemas de saúde despertaram.

Ele já não tinha forças para levantar sozinho da cama, mas na terça, 3 de novembro, com a ajuda de várias pessoas que o carregaram na escada, vislumbrou um sonho realizado: a reforma de um terraço.

Ficou radiante, mas atestou o abuso na sexta-feira, quando, já bem menos disposto, foi visitado pela equipe de cuidados paliativos. “Deram toda a atenção, mas no dia eu senti algo diferente. Ficou pouca esperança, um certa tristeza”, relembra Márcia.

Ciro morreu no domingo (8), seis dias após conversar com a Folha. Pela manhã, ele se sentia sem energia. “Estou agoniado e com medo”, falou, segurando a mão da esposa. “Aquilo não era normal. O Ciro nunca teve medo”.

No hospital, o professor não quis relatar seu estado para a médica. Com um “sim”, permitiu que a esposa contasse em seu lugar. Foi a última palavra que Márcia ouviu de sua boca.

Já ligado no oxigênio, seu olhar ficava mais e mais distante. “Muito lentamente, fui vendo como tudo estava diminuindo”, narra a esposa. Ela despediu-se, prometendo cuidar do seu legado e dar muita cor e luz para o terraço novo. “As pessoas fazem planos. O que não deu para fazer, eu faço”.

Vemos um senhor de cabelos brancos, sentado de bata hospitalar num leito, cercado por sete profissionais da área médica, seis deles de roupas azuis, do lado direito da foto, e um, de jaleco branco, do lado esquerdo
Ciro Marcondes Filho com médicos paliativistas; o professor da ECA-USP, que morreu aos 72 em 8 de novembro de 2020, teve acesso aos cuidados paliativos no fim da vida - Acervo Pessoal

O que são os cuidados paliativos?

São uma abordagem que não tem o objetivo de curar uma doença ameaçadora da vida, com ou sem chances de reversão, mas de atingir o bem-estar do paciente controlando sintomas físicos e emocionais. Os cuidados atravessam diversas especialidades médicas e incluem enfermeiros e assistentes sociais. Eles caminham lado a lado com outros tratamentos, porém compreendem a morte como um ciclo natural, sem antecipá-la nem adiá-la. O suporte se estende também para a família, oferecendo amparo desde o diagnóstico até o luto.

Veja outras histórias de pacientes vivendo com o câncer

Edilene Siqueira, 45
Não foi da noite para o dia que Edilene Siqueira, 45, aprendeu a lidar com a bolsa de colostomia que a acompanha desde que seu câncer no intestino foi removido. Com a cirurgia, em julho de 2018, foi necessário acoplar um reservatório para desviar o trânsito intestinal.

Ainda trata a metástase no ureter e fígado, mas, desde que iniciou o acompanhamento paliativo com psicóloga e nutricionista, Siqueira não tem mais vergonha de conversar sobre o assunto ou de mostrar sua bolsa para as pessoas ou de postar fotos no Facebook. Edilene também compartilha sua experiência nos encontros online da Casa Paliativa.

Vemos uma mulher de cabelos curtos, calça branca e blusa estampada, sentada contra um fundo verde-azulado; ela está enquadrada em um laptop, pois a foto foi feita a distância a partir da casa do fotógrafo
Desde que removeu um câncer de intestino, a doceira Edilene Siqueira, 45, tem de usar bolsa de colostomia; ela diz que o acompanhamento paliativo com psicóloga e nutricionista a ajudou a perder a vergonha da situação - Gabriel Cabral/Folhapress

Sua disposição serve de referência para pessoas que encontram sua história na rede, mas também para as enfermeiras do hospital público em Taubaté onde faz o tratamento. Frequentemente recebe pedidos para ir conversar ou gravar vídeos para pacientes que não recebem bem a notícia da doença.

“Meu filho pergunta se eu quero um netinho, mas eu falo que não posso. Deixa eu curtir minha doença primeiro, ficar bem e, na hora que ele vier, eu estarei bem para recebê-lo”, reflete ela.

Karla Prado, 55
As metástases ósseas e hepáticas de Karla Prado, 55, só surgiram sete anos após ter tratado o câncer de pulmão pela primeira vez. Até 2018, a doença estava em remissão, e seu retorno exigiu a quimio e a imunoterapia. Mesmo com os efeitos colaterais mais pesados, Prado tinha a decisão de não ficar em uma UTI.

Por iniciativa própria, investiu em um acompanhamento paliativo particular, antes mesmo do avanço das metástases. “Foi fundamental para eu poder ter o mínimo de qualidade de vida.” Ela conta que, por causa da radioterapia, sentia muita dor e diarreias. “Até tive que andar de bengala”, conta.

Quando identificou um nódulo no pescoço, em dezembro de 2019, seu médico recomendou uma biópsia e um teste genômico. Os exames identificaram a mutação RET Fusion, e, com isso, Prado conseguiu se encaixar no protocolo de uma droga experimental em um hospital na Flórida.

Vemos uma senhora de cabelos grisalhos curtinhos, de óculos, sorridente; ela é fotografada enquadrada na tela de um laptop, pois as imagens foram feitas a distância, a partir da casa do fotógrafo
Karla Prado, 55, diz que a abordagem paliativa "foi fundamental para poder ter o mínimo de qualidade de vida"; em outubro, ela decidiu voltar ao trabalho como analista de sistemas: “A minha vida tem planos, do mesmo jeito que todas. Quero me aposentar e sair pela porta da frente”. - Gabriel Cabral/Folhapress

Depois de 15 dias realizando a terapia-alvo, ela não precisava mais de remédios para a dor e hoje, nove meses tomando o medicamento, a doença entrou em remissão novamente.

Com o fim da sua licença médica, em outubro, ela decidiu voltar ao trabalho como analista de sistemas, apesar de não ver mais sentido na sua tarefa. “A minha vida tem planos, do mesmo jeito que todas. Estou fazendo isso por mim, porque eu quero me aposentar e sair pela porta da frente.”

E aproveitou para alfinetar a campanha de Outubro Rosa da empresa onde trabalha, que difundia como uma atriz “venceu o câncer”. Ela reclamou com a equipe de marketing. “Não é uma guerra e não é porque, digamos, eu esteja doente para sempre que não estou vivendo e que não venci. Tanto venci que estou aqui de volta”.

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