Descrição de chapéu Vida cultural na pandemia

Compare experiências culturais solitárias aos rituais coletivos

Ver show, peça ou filme em casa é um prazer incompleto, dizem especialistas

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São Paulo

Ler um livro no silêncio é uma coisa. Dançar só na frente da tela, é outra. Não deixa de ter algo de triste.

Muita gente dançou sozinha em casa neste 2020, a julgar pelo boom do streaming no Brasil e a popularização das lives.

Quem estuda essa nova realidade diz que é cedo para prever se toda essa atividade individual terá o mesmo fôlego na era pós-Covid.

"Somos seres sociais. O histórico é muito antigo para que seja quebrado em meses de pandemia", opina a pesquisadora Hilaine Yaccoub, 42, doutora em antropologia do consumo.

Para ela, streaming e lives tiveram seu papel na quarentena, amenizaram a necessidade de estar com o outro. Mas, ver um filme, um show ou uma peça em casa deixa lacunas para que a experiência seja completa. ''Falta o cheiro, o abraço. Temos outros sentidos, não? Encontros presenciais envolvem troca emocional que não ocorre na internet."

Não é a primeira vez que a humanidade muda a maneira de se relacionar com a cultura, lembra Pedro Duarte, 39, professor de filosofia da PUC-Rio e autor de ''A Pandemia e o Exílio do Mundo'' (Bazar do Tempo, 126 págs., R$ 38).

As experiências culturais se tornaram mais solitárias através da história, diz. "No passado, escutar música era um ritual coletivo que dependia da presença de instrumentos e músicos. Aí veio o disco, mudou tudo".

Assim como o disco não matou a magia do show ao vivo, ele aposta que os hábitos pandêmicos não enfraquecerão formas tradicionais de usufruto da arte.

"A live do Caetano Veloso com os filhos foi emocionante. Mas, até mesmo nos momentos mais alegres, eu sentia carência de alguma coisa. Pensava nos shows do Circo Voador, nas pessoas juntas, naquela alegria..."

Os efeitos dessa crise sobre a forma de consumir cultura não serão passageiros, na visão do psicanalista Joel Birman, 74, autor de ''O trauma na Pandemia do Coronavírus (Record, 168 págs., R$ 34,90).

Na sua opinião, o público brasileiro deve demorar mais para retomar a rotina e frequentar espaços culturais. A política negacionista adotada pelo governo, diz, criou um clima de desconfiança que conduz ao desalento —o indivíduo se sente exposto à morte.

"Apesar da nossa necessidade dos rituais coletivos de interação, nosso medo vai durar mais tempo. O efeito traumático perdura, por mais que a causa deixe de existir. A memória corporal vai nos impedir de encontrar, abraçar e beijar."

Birman pondera que os novos formatos culturais trouxeram perdas. "O ser humano necessita do ritual da reciprocidade, de estabelecer trocas afetivas ao consumir cultura, como em um show com milhares dançando, namorando, criando laços. No online, essa dimensão se perde."

Duarte levanta outra questão: "Pode ser que esses meios tecnológicos fiquem atrelados à memória de um momento ruim. De minha parte, voltarei ao coletivo. Quando vou ao cinema, o próprio percurso faz parte da experiência.

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