Descrição de chapéu Vida cultural na pandemia

Economia criativa dos britânicos amarga perdas de R$ 524 bilhões

Dependente do turista estrangeiro, setor de artes e diversão soma prejuízos no Reino Unido com a pandemia

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João Leiva
Londres

No Reino Unido, que vive os últimos dias de Comunidade Europeia e seu terceiro lockdown, o setor cultural contabiliza crescentes prejuízos e torce pelo sucesso da vacinação e o retorno dos turistas estrangeiros.

O Instituto Nacional de Estatísticas britânico avalia que, depois do turismo, arte e entretenimento foram as áreas que mais sofreram os efeitos da pandemia. Estudo da Oxford Economics estima perda de R$ 524 bilhões no movimento das indústrias criativas em 2020. Os estragos vão da ponta de maior potencial comercial às atividades educativas, base da formação artística e cultural do Reino Unido.

Em março, teatros, cinemas, museus e casas de shows foram fechados. A reabertura, com restrições e protocolos de segurança, teve pouco alcance. Agosto, mês de maior movimento para os museus londrinos, acabou com um público de apenas 13% do registrado em 2019. A Tate Modern, com o blockbuster Andy Warhol em cartaz, recebeu 103 mil visitantes, 17% dos 625 mil de agosto do ano passado.

Sem lançamentos de peso, poucos cinemas reabriram. Em outubro, após o adiamento da estreia do filme de James Bond, a rede britânica Cineworld voltou a fechar, alegando perdas de R$ 9 bilhões.

Os festivais de música do verão europeu, fonte de empregos temporários e palco para centenas de músicos, foram suspensos. A crise pegou em cheio casas noturnas e pubs com música ao vivo, os "grassroots venues", que já sofriam com a inflação no mercado imobiliário londrino. O som ao vivo movimentou R$ 8,9 bilhões em 2019 (22% do setor musical).

O teatro foi um dos setores mais afetados. O poderoso West End, um dos principais centros teatrais do mundo, cujo pico de movimento é em dezembro, permanecia com dois terços de suas salas fechadas na segunda reabertura. Em 2019, os 52 maiores teatros londrinos atraíram 15,3 milhões de pessoas (mais que as 14,5 milhões que viram os jogos do campeonato de futebol inglês in loco, como gostam de lembrar profissionais da área) e geraram R$ 5,4 bilhões em ingressos.

Pessoas com fantasias iluminadas em praça, à noite
Artistas dos West End protestam na praça do Parlamento, em Londres, por mais incentivos e auxílios para as artes cênicas durante a pandemia de Covid-19; o protesto foi realizado em 31 de outubro - Henry Nicholls/Reuters

Os processos de formação, essenciais para alimentar a riqueza criativa do país, também sofreram. Relatório da ISM (sociedade de músicos) indica que dois terços das escolas cancelaram atividades extracurriculares e 28% da rede não retomou as aulas presenciais de música para o ano letivo de 2020/2021, iniciado em setembro.

Profissionais e empresas da cultura recorreram aos planos de auxílio destinados ao conjunto da economia. Mas, como as cadeias produtivas da área contam com vários serviços que não envolvem vínculos estáveis, muitos trabalhadores ficaram de fora dos programas do governo.

Para atenuar o cenário, o DCMC (Departamento de Digital, Cultura, Mídia e Esporte) liberou R$ 10,7 bilhões para instituições culturais e pessoas físicas. Desse total, os R$ 3,7 bilhões distribuídos sob forma de doações patrocinadas ("grants") pelo Arts Council da Inglaterra beneficiaram 4.191 entidades e 7.486 pessoas.

O restante do recurso abastece ações na Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte, linhas de empréstimo, investimento, área de patrimônio e ainda auxilia cinemas independentes e casas de música ao vivo, onde florescem os futuros talentos do cenário musical.

Não é claro o alcance da ajuda, em especial no que tange às pequenas e médias instituições. O setor avalia que a verba será insuficiente, e a compara aos recursos anunciados na França, de R$ 31 bilhões.

Já um estudo do Centre for Economic and Business Research, contratado pelo próprio ACE, é otimista. Avalia que apenas o valor sob gestão do ACE (cerca de 50% da verba do DCMS) será suficiente para que a área cultural recupere o nível de atividade de 2019 já em 2022.

Com a pandemia, as iniciativas digitais se multiplicaram. Pesquisa da consultoria The Audience Agency (TAA), com 6.055 entrevistas, mostra que um terço dos britânicos viu algum evento cultural online (sem contar filmes e séries). As atividades mais buscadas foram peças de teatro ou musicais (17%), shows de música (15%), visita a exposições (8%) e eventos literários (5%). A maioria (60%), porém, só acessou conteúdos gratuitos.

Segundo Oliver Mantell, responsável pela pesquisa, há evidências de que o perfil do público para as artes pode mudar, dependendo de como os mais velhos e aqueles com histórico de menor engajamento reagirem ao fim das restrições.

"O impacto econômico entre os jovens e as pessoas de menor renda também tem sido substancial, o que deve afetar a intensidade e a natureza de seu engajamento", diz ele.

Nos webinários do setor que analisam o impacto da crise, a melhoria dos serviços online, a comercialização de conteúdos e a digitalização de acervos são temas recorrentes.

Paul Owens, diretor da BOP Consulting, acredita que a pandemia acelerou tendências já em curso, mas que o ambiente virtual não será a solução. "É apenas uma parte dela. Eventos online não se comparam e nem substituem a experiência ao vivo. A essência da ação cultural está na colaboração, está no fato de as pessoas estarem juntas", diz.

Um dos gargalos da retomada pode ser visto na composição da receita das instituições que recebem recursos do DCMS, o que inclui 15 dos principais museus. O suporte público participa com 30%. Doações e patrocínio respondem por 13%, e a bilheteria, pela maior fatia, 59%.

Ou seja, só a volta do público pode de fato dar sustentabilidade às instituições. Isso, porém, não depende apenas do controle da pandemia no Reino Unido. Nesse grupo de museus, 47% dos visitantes são turistas estrangeiros.

Eles também são vitais para as artes cênicas, principalmente em Londres. Os musicais, responsáveis por 62% da receita dos grandes teatros, recebem visitantes de todo o mundo, enquanto as peças atraem americanos, australianos e uma elite europeia que fala inglês. Os estrangeiros representam ainda 37% do público de festivais e eventos de música ao vivo, que atraíram no ano passado 12,6 milhões de visitantes do exterior.

Owens, também responsável pelo World Cities Culture Forum (rede de cidades em torno da cultura), diz que algumas metrópoles investiram em um modelo dependente de grande fluxo de pessoas, ''e a pandemia mostrou que isso pode ser uma fragilidade". Para reduzir a dependência, ele aposta em uma "estratégia baseada na proximidade", uma política que pulverize os recursos em mais e menores ações.

"Será que teremos a coragem e a visão política para investir em lugares menos óbvios?", pergunta.

O debate sobre a política cultural britânica está em suspenso. Lançado em janeiro, o documento "Let's Create" (vamos criar) estabelece as prioridades do DCMS para o período 2020-2030, apostando em descentralização e destacando a importância de o governo dar condições para que mais pessoas façam atividades criativas.

As ações que sustentariam essa estratégia seriam divulgadas em abril, mas o vírus tomou conta da agenda. A previsão, agora, é que sejam conhecidas no início do próximo ano. Já com o Reino Unido fora da Comunidade Europeia.

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