Operações na cracolândia não miram dependentes, afirma delegado

Especialistas discutiram combate à concentração de usuários no centro de SP em seminário da Folha

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Belo Horizonte

As operações da Polícia Civil de São Paulo nos últimos dias 11 e 19 na cracolândia não tiveram como foco os usuários de drogas. A afirmação é do delegado titular da 1ª Delegacia Seccional do Centro, Roberto Monteiro, responsável pelas recentes intervenções na área.

Na quinta-feira (26), o delegado participou do seminário São Paulo 2030, promovido pela Folha, que teve uma mesa em que foram debatidas possíveis soluções para a cracolândia. Alexis Vargas, secretário-executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura de São Paulo, e Rebeca Pelosof, fundadora da ONG Saúde da Rua, também participaram. A mediação foi de Fábio Haddad, editor de Cotidiano da Folha. O evento teve patrocínio da Sabesp e do Nelson Wilians Group.

Folha realiza webinário sobre o futuro da cracolândia de São Paulo
Folha realiza webinário sobre o futuro da cracolândia de São Paulo - Keiny Andrade - 26.maio.22/Folhapress

"Nós não temos qualquer ingerência na mudança de lugar do fluxo [termo que se refere à concentração de pessoas que frequentam a cracolândia]", disse Monteiro. "O dependente químico passa por uma triagem porque, durante a operação policial, o traficante transfere muita droga e dinheiro para o usuário e assim ele consegue fugir."

Segundo o delegado, o foco dessas operações policiais é prender vendedores de drogas e apreender mercadorias ilícitas. Nesse sentido, ele diz, policiais civis disfarçados vinham há meses mapeando as atividades dos traficantes na região.

Estima-se que o tráfico na cracolândia movimente R$ 200 milhões por ano, de acordo com a Polícia Civil. Os principais compradores seriam traficantes que revendem a droga em outros locais por preços maiores.

Em menos de dez dias, as polícias Civil e Militar e a Guarda Civil fizeram duas operações contra o tráfico na região, o que ocasionou a dispersão de mais de 500 pessoas da praça Princesa Isabel. No dia seguinte à primeira intervenção, um tumulto terminou com a morte do usuário Raimundo Nonato Rodrigues Júnior, 32, baleado por um policial na avenida Rio Branco.

Cerca de 500 agentes de segurança participaram das operações e, de acordo com o governo estadual, 17 pessoas foram presas. Mas não demorou para o tráfico voltar a operar na região, reunindo novamente centenas de usuários.

O Ministério Público abriu um inquérito no último dia 16 para investigar a ação policial na praça Princesa Isabel. Em outra frente, a Defensoria Pública de São Paulo denunciou supostas agressões a dependentes químicos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Apesar das explicações de Monteiro, a prefeitura chegou a atribuir as ações da polícia à necessidade de dispersar os usuários. A prática, segundo o Executivo municipal, facilita a abordagem dos agentes de saúde que oferecem apoio psicológico e social aos dependentes químicos.

O modelo foi defendido por Alexis Vargas, da prefeitura. Ele citou exemplos de operações ao redor do mundo que teriam tido sucesso ao utilizar o mesmo método de dispersão de usuários de drogas e mencionou iniciativas em Frankfurt, na Alemanha, e em Nova York, nos Estados Unidos.

Ele, no entanto, apontou diferenças entre as realidades enfrentadas por autoridades estrangeiras em relação à dependência química com as de São Paulo.

"Quase todos esses exemplos internacionais lidavam com a heroína e, nesse caso, há tratamentos medicamentosos para reequilibrar o corpo e assim as pessoas irem reduzindo a dependência da droga paulatinamente. Já para o crack não tem isso", afirmou.

Organização responsável pela abordagem de usuários de crack na região, a Associação Comunitária São Mateus, contratada pela prefeitura, porém, afirma que a dispersão de dependentes químicos pelo centro torna mais difícil o trabalho das equipes de assistência social.

O secretário-executivo da prefeitura também destacou a importância de projetos sociais para auxiliar os dependentes. No cenário municipal, a prefeitura de São Paulo tem desde a gestão João Doria (2017-2018) o programa Redenção, que oferece atendimento médico.

"As ações implementadas estão tendo sucesso na redução do fluxo e no aumento do atendimento", disse Vargas. Segundo ele, mil pessoas foram encaminhadas para atendimento na região da cracolândia em abril, sendo que 700 frequentavam a praça Princesa Isabel.

É incerto, porém, o rumo desses dependentes. Cerca de mil pessoas frequentam a cracolândia hoje, de acordo com a Polícia Civil.

Além disso, desde 2017, a prefeitura abriu 14 centros de Atenção Psicossocial (Caps) em toda a cidade —a ideia, nesse caso, é oferecer ao dependente tratamento em local próximo de sua residência, evitando que ele chegue à cracolândia.

A cidade de São Paulo tem hoje 96 Caps. Paralelamente, o governo estadual mantém o programa Recomeço, que busca combater o vício por meio de internação em hospitais e comunidades terapêuticas.

Balanço da Secretaria de Estado da Saúde aponta que a busca de dependentes químicos por tratamento aumentou 23% na região da Nova Luz, no centro, após as duas últimas intervenções policiais. Esse foi um dos argumentos usados pelo governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB), para dizer que as operações policiais vão continuar.

Rebeca Pelosof, fundadora da ONG Saúde da Rua, apontou para a necessidade de integrar esforços de todos os setores do poder público. Conforme mostrou a Folha, a Prefeitura de São Paulo encaminhou nos últimos cinco meses apenas duas pessoas para as vagas de internação para dependentes químicos disponíveis por meio de convênio com o governo estadual.

O acordo entre os executivos municipal e estadual previa a exploração do programa Recomeço pela prefeitura. "A cracolândia existe há mais de 25 anos, mas até agora não achamos uma solução que envolva saúde, segurança pública e questões socioeconômicas", afirmou Pelosof.

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