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18/10/2011 - 19h41

Camila Vallejo é o rosto da primavera chilena

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ELEONORA DE LUCENA
DE SANTIAGO

Ela tem 23 anos, olhos verdes, piercing no nariz e é comunista. Lidera manifestações de centenas de milhares de estudantes que pedem o fim do modelo neoliberal hiperprivatizado de educação no Chile.

Encontro Camila no início de setembro, na sede da reitoria da Universidade do Chile, o imponente prédio neoclássico que está tomado pelos estudantes em greve. Fica a menos de 500 metros do Palácio de La Moneda, sede do governo chileno.

Nas paredes, cartazes pedem a implantação de um sistema de ensino público e gratuito. Atacam o lucro das escolas e querem renacionalizar a exploração das minas de cobre e usar o dinheiro na educação.

No pátio central do prédio, Camila fala a 300 estudantes ao lado do rapper porto-riquenho René Perez, do grupo Calle 13. Ele dá apoio aos estudantes, que fazem perguntas, tiram fotos e arrancam uma breve cantoria. Ela cede o microfone e organiza a palestra.

Já na rua, é cercada por repórteres e distribui autógrafos. Tem nas mãos uma pequena panela vermelha que usa para batucar nos protestos. Na bolsa carrega "Gramsci e a Educação", mas me conta depois que não teve muito tempo para lê-lo.

Marcelo Hernandez/.
A estudante e líder do movimento estudantil chileno Camila Vallejos, 23, em Santiago
A estudante e líder do movimento estudantil chileno Camila Vallejos, 23, em Santiago

Quem é Camila? "Uma pessoa tranquila, tolerante, muito autocrítica e muito perseverante. Gosto de ter liberdade de ação, tomar decisões, não gosto de me sentir amarrada."

Mas ser do Partido Comunista não requer disciplina e não tolhe movimentos? Sim, há muita disciplina, mas ela diz que tem "margem de ação".

"Pensam que a gente recebe ordens; não é assim, há o centralismo democrático." Para ela, a militância "não sufoca".

Pergunto como é ser comunista depois da queda do Muro de Berlim e do fim da URSS. "Não nos identificamos com esses paradigmas com os quais tratam de nos demonizar. Nos baseamos na experiência histórica e nos princípios marxistas-leninistas. Ser comunista hoje é saber que são necessárias mudanças sociais estruturais e ter a consciência de que, para isso, se necessita de organização", afirma.

ROTINA

Nesses últimos meses, sua agenda é intensa. "É preciso sacrificar horários de família, de estudos, de namoro", desabafa. Sua tese de geografia social --sobre comunidades pobres afetadas em desastres-- foi congelada.

Viajar é do que mais gosta. Foi de ônibus até Florianópolis. Visitou o Uruguai e Cusco. Em Cuba, adorou a cidade de Santa Clara. Trabalhou como garçonete e promotora de evento. Paga suas despesas desde os 18 anos. É a favor da legalização da maconha e do aborto.

Para ela, "é necessário haver uma renovação geracional" na política chilena. Ser candidata ao parlamento "não é prioridade", mas ela não descarta a hipótese. O pai, Reinaldo Vallejo Navaro, também comunista, não gosta da ideia, pois seria o mesmo que pactuar com um modelo político falido.

Encontro-me com ele na Florida, bairro de classe média no sudeste da grande Santiago. É lá que ela mora com os pais, onde chega muitas vezes só para dormir. Do metrô, vejo a neve da cordilheira pintada de vermelho pelo pôr do sol.

Reinaldo me fala sobre a família, que traz vestígios da história de um país polarizado, que passou pela experiência socialista de Salvador Allende (1908-1973), pela ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006), por uma coalizão de centro-esquerda e agora tem o primeiro presidente de direita eleito em 50 anos.

Um dos avós de Camila foi do grupo de extrema-esquerda MIR (Movimento de Esquerda Revolucionário). Um tio-avô foi general de Pinochet. O pai de Reinaldo foi socialista; sua mãe, muito católica, morou em São Paulo.

O pai de Camila tinha 20 anos quando houve o golpe de 1973. Reinaldo cursava teatro e era militante do PC. Tinha atuado com o diretor e músico Víctor Jara. Naquele 11 de setembro, para escapar da prisão, refugiou-se numa sala para infectados em um hospital. Não conseguiu voltar à faculdade. Foi detido por três vezes durante a ditadura.

Conheceu a mãe de Camila em 1984, quando ambos trabalharam num espetáculo de resistência. Ele era ator. Aos 24, Mariela Dowling Leal fazia a iluminação. Tinha começado a faculdade de cartografia, mas a ditadura eliminara o curso. Foram morar num apartamento alugado.

Camila, terceira de quatro irmãos, nasceu em 28 de abril de 1988. A família já tinha se mudado para uma casa de 60 m2 numa rua de terra do bairro Macul. Para melhorar o orçamento, vendiam empanadas no centro.

Sem dinheiro, Reinaldo virou encanador. Nos finais de semana, fazia teatro itinerante, carregando a família a tiracolo. Trocava apresentações em colônias de férias de sindicatos por hospedagem para a família.

Histórias não faltam. Na praia de Horcón, no litoral central, Camila ficou perdida por uma hora. Tinha entre cinco e seis anos. "Fiquei com a sensação de que foi ela que nos encontrou de volta", diz ele. A filha conversava calmamente com estranhos, quando os pais chegaram esbaforidos. "Ela não perdia o rumo", diz o pai orgulhoso.
Reinaldo acha que a escola foi mais importante na formação da filha do que a convivência com os pais comunistas. Até entrar na faculdade de geografia da Universidade do Chile, em 2006, ela estudou na Raimapu.

"É um colégio particular e caro. Ela até precisou sair por dois anos porque não tínhamos como pagar. Não tinha muita infraestrutura, mas dava aos alunos muita visão de autonomia e cidadania", diz.

Ligo para o Raimapu, uma escola de 730 alunos que afirma seguir a linha científico-humanista. Lá me dizem que ela foi uma excelente aluna. Na escala de notas de 1 a 7, estava sempre acima de 6 e perto de 7. Fora o bom desempenho, não se sobressaiu.

HOLOFOTES

Camila não chamou a atenção quando começou a frequentar o PC em 2007. Sigo até a sede do partido. Na fachada, há uma livraria e um café. Livros de Marx, Lênin, Che. Sanduíches naturais e expressos.

O pequeno salão ao fundo está enfeitado com balões vermelhos e há um bolo. É a festa de 79 anos da JC (Juventude Comunista). Camila é a presença mais esperada. Ela é uma surpresa para os velhos militantes que acham que a líder tem sucesso porque é "autêntica".

Mas ela não aparece. Pelo Twitter, onde tem 270 mil seguidores, manda um alô pelo aniversário das "gloriosas jjcc".

Vou ao Palácio de La Moneda, onde Camila participara, dias antes, de uma reunião de negociação com o presidente Sebastián Piñera. Andrés Chadwick, secretário-geral de governo, evita fazer comentários específicos sobre pessoas. Mas declara que pode haver "problema de representatividade" nas lideranças estudantis.

Preocupado com a imagem externa do Chile e com a queda de popularidade do presidente, Chadwick reconhece que há mudanças a fazer. "É preciso exigir melhor qualidade e controlar recursos públicos entregues para a educação particular", diz à Serafina. Ele diz querer diálogo e corrigir o sistema, sem "jogar tudo pela janela".

POLÊMICA

Nos corredores do palácio, a líder é taxada de ser manipulada pelo PC e de ter ambições carreiristas. No mês passado, uma funcionária do governo chegou a pedir, pelo Twitter, o assassinato de Camila, repetindo uma expressão usada por Pinochet em relação à morte de Allende. A servidora foi demitida, e os pais da jovem entraram na Justiça.

Na TV, Camila é criticada por estudantes que querem uma ação mais radical, mais protestos de rua. Dizem que ela não é "dona" do movimento. Alunos em greve de fome pelo ensino público e gratuito são entrevistados.

Pergunto a Ignacio Sánchez, reitor da UC (Universidade Católica), o que pensa sobre a líder. Ele me diz que ela e Giorgio Jackson (estudante da UC) "representam os dirigentes mais dispostos ao diálogo com o governo, reitores e outros atores". Sánchez teme os que querem "tornar o conflito agudo".

A jovem militante, que tenta se equilibrar entre as pressões de governistas, de um lado, e esquerdistas, anarquistas e trotskistas, de outro, recebe a Folha na sede da Fech (Federação de Estudantes da Universidade do Chile). Fica num sobrado numa ruela que homenageia José Carrasco Tapia, jornalista assassinado na ditadura.

A Fech foi criada em 1907. Pablo Neruda e Gabriela Mistral escreveram em sua revista. Foi em sua antiga sede (que não existe mais) que Allende fez seu discurso após a vitória em 1970. Camila, que assumiu o comando em novembro passado, é a segunda mulher a liderar a entidade.

Hesitou em concorrer. O pai a estimulou, dizendo que ela iria ganhar experiência. Agora precisa administrar sua imagem. Ser bonita é uma vantagem. Mas se arrepende de ter saído numa revista de celebridades.

Ela acredita que o movimento ganhou adesão das famílias chilenas em razão dos custos com o ensino. Depois, abarcou questões gerais como o plebiscito e a reforma tributária. "Há uma crise no Estado, o governo está encurralado", afirma.

Faz paralelos entre o que ocorre no Chile e as revoltas árabes e europeias: é a crise do capitalismo. Vê diferenças. Analisa que os chilenos "partiram do micro para o macro, com muita organização", enquanto outros "têm feito direto do macro, sem organicidade maior".

Como arregimentar os jovens, sempre ligados aos conceitos de consumismo e de individualismo? "Precisamos quebrar o paradigma de que as coisas se resolvem sozinhas, de forma individual", responde, admitindo que "para muitos os comunistas são algo terrível". "Respeito aos direitos humanos é central", emenda.

Camila concorda que há risco de frustração do movimento, já que "as expectativas são muito altas". Para ela, mudar o modelo neoliberal é uma batalha que levará anos. "Espero que não termine como Maio de 68", diz.

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